Ilha do Príncipe: Onde Homem e Natureza não se atropelam

Deixamos para trás São Tomé e partimos em direção à ilha do Príncipe, a segunda maior deste arquipélago africano no Golfo da Guiné, com 31 milhões de anos. Serão três dias de novas aventuras e descobertas. As paisagens, essas, são idílicas e os sorrisos deste povo multiplicam-se.
São 7h30, à porta do hotel Omali espera-nos o nosso transfere para o Aeroporto Internacional de São Tomé. O voo para o Príncipe está previsto para sair às 9h00, mas antes há que pesar as malas. Só são permitidos 15Kg por pessoa, por isso é melhor levar uma pequena mala para passar uns dias nesta ilha. Desta vez a viagem será curta, apenas de 35 minutos, quase tão curta como o pequeno aparelho da companhia aérea portuguesa Sevenair, com 19 lugares, que une as duas ilhas duas vezes por dia.



O tempo está perfeito, o que nos faz acreditar que a viagem não terá muitas surpresas (turbulência). Levantamos voo e cá em baixo vemos as pequenas casas desaparecerem lentamente, enquanto o mar nos acompanha até ao próximo destino. Poucos minutos depois – sim, o tempo passa mesmo a correr – começamos a avistar a ilha do Príncipe. Confesso que a curiosidade é muita, já que quando visitei São Tomé da primeira vez, não pude ir ao Príncipe. As fotografias que vemos em reportagens e revistas podem levar Photoshop, nunca sabemos, penso eu. Mas à medida que o pequeno aparelho se vai aproximando do nosso destino, penso que estou a chegar ao cenário do filme “Parque Jurássico”. A intensa vegetação pinta de vários tons de verde a paisagem, enquanto o azul do mar lhe confere ainda mais intensidade.
O aparelho da Sevenair prepara-se para aterrar e enquanto faz uma ligeira curva à esquerda para se posicionar de frente para a pista, à nossa direita vemos o pequeno ilhéu Bombom, onde existe um pequeno resort, atualmente encerrado, mas que em 2024 voltará a abrir portas.
Chegar ao aeroporto da ilha do Príncipe é quase como ter entrado numa cápsula do tempo e recuado alguns anos. No pequeno terminal esperamos pelas nossas bagagens, que são distribuídas aos passageiros diretamente do carrinho que as transporta. Tudo “leve-leve”, porque a vida é para ser vivida devagar, saboreada ao ritmo desta terra que tanto tem para ensinar ao “comum dos mortais”.


À nossa espera está já o nosso guia, o jovem Wuilber Tavares que trabalha para a HBD (Here Be Dragons) Príncipe, empresa sustentável de ecoturismo e agrofloresta do sul-africano Mark Shuttleworth e também proprietária de alguns dos hotéis que iremos visitar.
No exterior, uma espécie de jipe safari vai levar-nos pelas estreitas ruas da ilha para um rápido reconhecimento do destino, enquanto as nossas bagagens seguem viagem até à Roça Sundy, onde iremos pernoitar. Mas sobre esta contar-vos-ei mais adiante. Por agora seguimos a estrada curvilínea, por entre a intensa vegetação. Primeira paragem: Roça Paciência.
Situada no nordeste da ilha, a Roça Paciência foi, durante o auge da exportação de cacau da ilha do Príncipe, uma plantação satélite da Roça Sundy. Hoje é ali que a HBD fabrica os seus produtos corporais como o óleo de coco. É aqui também que Wuilber nos explica todas as ervas medicinais e aromáticas e os legumes e frutas que ali se plantam. Sabiam que a baunilha para dar o seu primeiro fruto leva três a quatro anos? E que depois das vagens crescerem é necessário esperar mais nove meses até que fiquem secas e prontas a serem consumidas? Pois é, da próxima vez que forem a um supermercado já ficam a perceber porque são tão caras. Na Roça Paciência existe ainda uma pequena loja onde é possível adquirir alguns produtos.
Avistar as praias Macaco e Banana com direito a almoço na capital: Santo António
Depois das explicações e rápidas aprendizagens regressamos ao nosso “safari”. Mais uma vez envolvidos na natureza partimos rumo ao desconhecido, numa estrada que nos leva até ao Miradouro das Antenas. Lá em baixo, à nossa direita está a famosa Praia Macaco. O sol bate na água e as várias tonalidades de azuis provocam-nos um sorriso de orelha a orelha. Como não ser feliz aqui, onde Homem e Natureza se fundem sem nada estragarem.

Tempo para algumas fotografias mágicas (sem Photoshop, garanto-vos) e uma breve explicação, pois é dali que a partir de junho é possível observar golfinhos, mas também baleias, que ali param para alimentar as crias a caminho dos Açores, nos meses de agosto a novembro.
Contam-nos que a Praia Macaco está concessionada ao Grupo HBD, que a seu tempo poderá vir a construir um hotel com 54 quartos. A seu tempo, entenda-se, esse tempo que só se regista nas ilhas do Príncipe e de São Tomé. Para já, a ideia do grupo é mesmo preservar uma vez mais a sustentabilidade da ilha.
Partimos para nova paragem, desta vez para o Miradouro da Praia Banana. Penso que não existem palavras suficientes para descrever tamanha beleza e plenitude num só quadro. Daqueles quadros que ficam guardados na nossa memória para sempre. Portanto, o melhor mesmo é experienciar pessoalmente. Na extensa praia em formato de banana, a areia branca e o azul do mar voltam-se a fundir. Lá em baixo, um pequeno barco recolhe um casal de turistas, que decerto ali parou para aproveitar uns belos mergulhos. Uma prática recorrente por estas paragens, diga-se de passagem. Com uma costa lindíssima, com praias paradisíacas e desertas, o mais fácil mesmo é fazer um passeio de barco e escolher onde quer mergulhar. Foi o que nós tivemos oportunidade de fazer, com o bónus de nos ter sido servido um pequeno piquenique onde não faltaram as frutas exóticas locais, bolo de cacau e a omeleta de micocó (erva que já tivemos oportunidade de experimentar em São Tomé).
Por falar em comida, a nossa manhã já vai longa e depois de termos aberto o apetite com tão belas paisagens vamos rumar à capital do Príncipe: Santo António.
Com pouco mais de 2.000 habitantes, Santo António é considerada a cidade mais pequena do mundo. As casas do tempo colonial e o Rio Papagaio fazem parte de si, assim como a diversidade da população, que ao longo de mais de cinco séculos criou uma mescla cultural de vários países africanos como Angola, Cabo Verde e Moçambique.
Apesar de alguns edifícios estarem abandonados, como por exemplo a Casa do Governador, a pequena cidade apresenta-se bastante limpa, o que contrasta um pouco com São Tomé. As pequenas casas de madeira pintadas e os terreiros limpos deixam-nos agradavelmente surpreendidos. Explica-nos o guia, que tem sido feito um trabalho de formação junto da população para evitarem doenças através da acumulação do lixo.
No ano em que adquiriu o estatuto de cidade, estava-se em 1753, Santo António logo passou a ser capital do arquipélago, mantendo-se assim até 1852.
Dois terços da população no Príncipe é católica apostólica, acorrendo à igreja aos domingos, no entanto, existem pelos menos mais uma dezena de credos na ilha. É em agosto que acontecem as principais expressões de cultura, com destaque para o “Auto da Floripes”, que representa o confronto entre mouros e cristãos. Uma festa que arrasta para a rua várias pessoas e que se desenrola ao longo da cidade, onde depois da representação não faltam as “barraquinhas” de gastronomia tradicional.


E por falar em gastronomia tradicional, tempo para uma paragem no restaurante Juditinha. Aberto há cinco anos, serve essencialmente almoços, enquanto os jantares são mais por encomenda, como explicou ao Turisver a própria Juditinha. Uma mulher esguia, com um sorriso nos olhos, que nos serve, enquanto apresenta o que iremos comer. Com o restaurante cheio, Juditinha explica ter passado algum “sufoco” durante a pandemia Covid 19, quando a ilha não recebia turistas. Agora as coisas estão a regressar à normalidade e o trabalho esse, não tem mãos a medir.
Molho no fogo, peixe grelhado, polvo estufado, calulu, moqueca, feijão da terra, feijão de coco e obobo são apenas alguns dos pratos servidos neste espaço, onde uma refeição custa 200 dobras (1€ = 25 dobras), sem bebidas.
Quem ali estava também eram alguns hóspedes da Roça Sundy, que quando fazem uma excursão a Santo António são presenteados com este almoço.
Para a Roça Sundy, passando pela Cooperativa de Valorização dos Resíduos Ilha do Príncipe
Almoço comido e, que rico almoço, regressamos ao nosso passeio em direção à Roça Sundy, do Grupo HBD, onde ficaremos alojados nestas duas noites no Príncipe. Mas antes faremos uma pequena paragem na Cooperativa de Valorização dos Resíduos Ilha do Príncipe para ficarmos a saber como um grupo de mulheres transformou garrafas de vidro em joias. Sim, leu bem.


Tudo começou em 2016 quando um grupo de 10 mulheres da comunidade de Porto Real consultou a Fundação Príncipe, uma ONG de conservação criada em abril de 2015, que nasceu como “braço ambiental e social do Grupo HBD e com financiamento de Mark Shuttleworth”, com intuito de fazerem um negócio que fosse amigo da biosfera. Foi então, que surgiu a ideia de produzir joias com as garrafas de vidro e composto com os resíduos orgânicos.
Partiram para o Gana em busca de formação e um ano mais tarde, um grupo ganês descolocou-se até ao Príncipe. Depois das várias formações, a Cooperativa acabou por fazer uma parceria com o Governo Regional, que lhes cedeu o espaço de compostagem, assim como o edifício para o fabrico das joias e que tivemos oportunidade de visitar, nós e quem visita o Príncipe, uma vez que a Cooperativa passou a ser um dos pontos turísticos mais visitados da ilha.
Em 2018 chegaram mesmo a receber o prémio Yves Rocher Foundation e com o dinheiro acabaram por comprar uma carrinha para a recolha de resíduos pela ilha. No ano seguinte as joias da Cooperativa começaram a ser vendidas online. Hoje e depois do Covid restam apenas duas mulheres à frente deste projeto. Escusado será dizer que também nós comprámos uns quantos colares, pulseiras e brincos.
O dia já vai longo, tempo de partirmos para a Roça Sundy, a mesma que a 29 de maio de 1919 dava como provada a Teoria da Relatividade Geral de Einstein, quando uma equipa de astrónomos liderados pelo britânico Arthur Eddington validou o encurvamento gravitacional da luz, depois de terem observado um eclipse solar daquele local. Mas antes de nos alojarmos nos nossos quartos fizemos uma pequena visita à fábrica de chocolate, ouvindo as devidas explicações de como tudo se processa, nesta que já teve a maior plantação de cacau da ilha. Desde os chocolates com vários graus de percentagem de cacau, aos produtos corporais feitos de coco, infusões de cacau, entre muitos outros produtos, o difícil mesmo foi conter a vontade de tudo levar para Portugal.
Os edifícios, que datam dos séculos XVIII e XIX, foram restaurados usando técnicas históricas, resultando daqui uma propriedade boutique composta por dois edifícios: Eclipse House e Cacao House. Com 15 quartos no total, a Roça Sundy mantém ainda vestígios do antigamente, como o mosaico da casa principal e que nos transporta a tempos idos. Os quartos espaçosos e com mobiliário de época faz-nos recuar até às antigas fazendas, divididas entre a casa do patrão, a casa do feitor e as sanzalas, onde ficavam os trabalhadores.
A viver paredes-meias com a população local, na Roça Sundy é possível sentir-se da terra. Os animais, como porcos e galinhas andam à solta, enquanto as crianças se reúnem à volta da árvore que dá uma espécie de amêndoas e vão partindo o fruto para trincar. Mais adiante há quem abra a porta de sua casa e ofereça uma cerveja local Rosema. À entrada da Roça Sundy existe ainda uma escola primária que tivemos oportunidade de visitar e entregar material escolar. Já depois da Cacao House está a creche, onde a pequenada até aos cinco anos de idade canta alegremente.
O passeio de barco e o almoço no Sundy Praia
Estamos acordados há várias horas e o dia já vai longo. Aqui as horas parece que se multiplicam e ainda assim são poucas para absorvermos tantas experiências e beleza.
Depois de umas horas bem dormidas, o dia volta a raiar bem cedo. Na sala de refeições espera-nos um fausto pequeno-almoço, onde não falta mesmo nada. As frutas frescas, os sumos naturais, o café da ilha e o bolo caseiro são apenas algumas das iguarias que consigo mencionar. Espera-nos o nosso “amigo” Wuilber Tavares para um passeio até ao Sundy Praia Lodge, outro dos alojamentos que fazem parte do grupo HBD. Um resort de cinco estrelas com 15 tendas ecológicas que se estendem pela costa selvagem como se ali não estivessem.
Partimos a bordo de um pequeno barco, como anteriormente já referimos, percorrendo parte da costa da ilha. Avistámos a Praia Marmita, a Praia Margarida e vamos nos afastando um pouco mais. À medida que nos afastamos da Praia Sundy parece que entramos noutro nível de paisagem. Selvagem, em bruto, como se o Homem nunca lá estivesse estado. Não é à toa que o Príncipe foi declarado Reserva da Biosfera Mundial pela UNESCO em julho de 2012 e que este ano, de 2023, poderá mesmo ver renovada esta classificação, segundo acredita José Cassandra, antigo presidente do governo regional do Príncipe e líder da Associação dos Amigos do Príncipe. Com cerca de 40 espécies únicas, o Príncipe conta com uma das biodiversidades mais ricas da Terra.
Chegámos à Praia de Areia Branca, o sol incide sobre a água e vêm ao de cima tonalidades que nem sabia existir. Há quem não resista a que o barco atraque e salte num mergulho nestas águas límpidas. O mar calmo e quente não faz hesitar.
Pelo caminho, lá no alto, deixámos os picos João Dias Pai e João Dias Filho. O primeiro com uma altura de cerca de 644 metros e o segundo com cerca de 436 metros.



Mergulhos dados e um pequeno piquenique, de que já aqui falámos, regressamos à embarcação de regresso à costa oposta da ilha, em direção ao ilhéu Bombom. Se em tempos já fez as delícias de quem ali pernoitava, no próximo ano e depois de algumas obras de recuperação levadas a cabo pelo grupo HBD tudo será ainda melhor. É aguardar.
Está na hora do almoço. A embarcação traz-nos de volta ao Sundy Praia e é lá que vamos comer o nosso repasto. Antes, uma breve passagem pelo bar para um gin e depois do almoço uma breve inspeção às pequenas villas deste ecolodge que lhe falaremos mais pormenorizadamente num outro artigo.

Regressamos à Roça Sundy, no transfere que diariamente está disponível entre os dois alojamentos, com partida às 17h30. Estamos quase a deixar esta ilha, que nem sempre se chamou Príncipe. É verdade. Quando a 17 de janeiro de 1471 foi abordada pelos navegadores portugueses, João de Santarém e Pedro Escobar, comemorava-se o Dia de Santo Antão, ficando assim batizada. Só mais tarde acaba por ter a denominação de Príncipe, quando é declarado que o tributo da ilha deveria reverter a favor do Príncipe João III.
A 29 de abril de 1995 alcança o estatuto de Região Autónoma e em 2006 José António Cassandra toma posse como presidente, pelo partido União para a Mudança e Progresso do Príncipe. Com cerca de 142 quilómetros e quase 8.000 habitantes, a ilha tem uma população maioritariamente jovem, sendo o seu atual presidente Regional Filipe Nascimento.
Noite dormida, pequeno-almoço tomado e está na hora das despedidas. Não sei se mais alguma vez regressarei ao Príncipe, mas estou feliz por ter tido a oportunidade de aqui estar. Sei que ficaram muitas coisas para ver, mas sei também que sou abençoada por ter recuado no tempo e experienciado este local onde Homem e Natureza são “unos”, onde não há atropelos nem atrocidades cometidas contra o planeta. Como sempre devia ser.
À nossa espera está o “nosso” pequeno avião da Sevenair para regressarmos a São Tomé. Avisam-nos que hoje o tempo não está de feição e que talvez haja alguma turbulência. Apesar de alguns solavancos para fugirmos à trovoada lá pousámos em porto seguro. Agora já só falta regressar a Portugal. Às vezes os regressos não são assim tão simples, daí termos aconselhado a que não leve os dias contados. Seja como o destino, “leve-leve” e tudo corre da melhor maneira possível, não ao ritmo do seu tempo, mas ao tempo de um Universo, que tudo sabe o que faz.
Leia a 1ª parte e a 2ª parte da reportagem sobre a viagem a São Tomé e Príncipe. De realçar, que as autoridades de São Tomé levantaram a obrigação de apresentação de certificado de vacinação ou teste negativo ao Covid-19, no dia 11 de fevereiro.
Nota: O Turisver visitou São Tomé e Príncipe a convite do operador turístico Sonhando