Os sistemas de formação europeus deveriam ter uma abertura maior
Recentemente nomeado CEO da Les Roches, Carlos Díez de la Lastra é, desde 2014, diretor-geral da Les Roches Marbella, campus onde estudam muitos alunos portugueses. O Turisver falou com ele sobre o ensino nos dois últimos anos e sobre a problemática da formação, dos recursos humanos e da certificação de cursos.
Como é que a Les Roches, concretamente a escola de Marbelha, que dirige passou estes dois últimos anos?
Foram anos complicados para todas as pessoas que trabalham no setor da hotelaria e no setor da formação. Tivemos que acomodar todo o nosso protocolo e a nossa maneira de trabalhar, passando para o online na maioria das situações. No nosso caso foi particularmente complicado porque nas nossas escolas temos entre 80 a 99% de alunos internacionais, o que dá uma média de 95% e muitos deles de países e regiões onde havia mais problemas para viajar e restrições muito mais duras do que aquelas que tínhamos cá. Isso levou a que tivéssemos um grupo de estudantes que levou mais tempo a recuperar a normalidade. Apesar de tudo, as coisas correram relativamente bem porque os estudantes fizeram um grande esforço para se manter e vamos recuperar a normalidade sem muitos problemas.
Como é que vão recuperar as áreas mais práticas?
Tivemos que fazer um grande esforço para passar para a tecnologia muitas das coisas que fazemos na prática, aliás a nossa escola distingue-se pela transformação do estudante e por um tipo de ensino que tem muito por base o contacto pessoal. Isso significa que o tipo de treino que fazemos numa situação normal não é o mesmo que se consegue fazer através da tecnologia.
Tomámos as medidas de segurança necessárias e o que fizemos foi mudar a ordem das coisas. Ou seja, concentrámos os estudos mais teóricos durante a pandemia e agora estamos a recuperar a parte mais prática que implica a presença dos alunos.
Esta situação pandémica refletiu-se na desistência de alguns estudantes portugueses?
Não, pelo contrário. Os estudantes portugueses, tal como os espanhóis, ficaram mais tranquilos e foram mais flexíveis, até porque foram os primeiros a poderem regressar a suas casas, enquanto os estudantes de outras nacionalidades tiveram mais problemas por causa dos voos. Também por isso, portugueses e espanhóis foram os que mais rapidamente puderam voltar à escola.
A pandemia também serve de ensinamento
O que é que se aproveita de uma situação como esta da pandemia que nunca tinha sido vivida por nenhuma das gerações atuais?
Uma coisa muito importante que aproveitámos, não só os estudantes mas também os profissionais de hotelaria, foi o facto de as pessoas terem ficado muito mais conscientes da debilidade do setor e das mudanças que precisamos de introduzir. Durante os últimos anos, a hotelaria conheceu muitas mudanças mas ninguém estava a pensar que poderíamos viver uma situação em que o negócio fosse praticamente nulo. Vivemos crises do petróleo, guerras localizadas, momentos que provocaram quebras no negócio mas não fazer negócio nenhum, ninguém esperava.
Evidentemente, tudo isto foi muito mau mas, ainda assim, houve coisas boas que tanto os estudantes como os órgãos diretivos perceberam, nomeadamente a necessidade de ter uma mentalidade muito desperta e de introduzir maior flexibilidade nos sistemas – por exemplo, muitas empresas disseram que avançaram mais nestes dois últimos anos do que nos 20 anos anteriores no que toca às tecnologias, à flexibilidade relativa aos horários laborais, ao compromisso com as pessoas para que se pudesse avançar. No caso da escola, introduzimos muitos programas de gestão de crises e com isso pudemos dar aos nossos estudantes, tanto aos de grau universitário como aos que já estavam a trabalhar, muito mais conhecimentos e competências no que toca ao management em situações de crise.
O que é que tem mudado na escola e na formação ao longo dos últimos anos que vos distinga face aos vossos concorrentes?
Implementámos um programa que nos posiciona como líderes do setor entre as cinco escolas mais importantes do mundo. A nossa escola tem muita tradição no serviço pessoal, na atenção ao luxo, no contacto e gestão de pessoas para serviços de excelência mas, acima disso, a Les Roches implementou um programa denominado “Spark”, um projeto global que tem por objetivo levar até ao campus as últimas inovações do setor para que os estudantes possam conhecer as mais avançadas tecnologias ao serviço do setor, porque a nossa filosofia reside em treinar os nossos profissionais com a realidade do que vão fazer.
Hoje, a tecnologia já não se ensina através de livros nem com um computador. A tecnologia ensina-se convidando as empresas e os empreendedores para que interajam com os profissionais e para que estes, quando estiveram nos seus hotéis possam interagir com as últimas tendências do setor e possam aplicá-las de forma a que aportem mais valor.
A consciência dos turistas tem vindo a mudar no que toca à sustentabilidade e em termos ambientais. A Les Roches incorpora estas áreas nos seus cursos?
Estamos a fazê-lo já desde há oito, dez anos exatamente porque sentimos que existe uma muito maior preocupação em termos de sustentabilidade e por tudo o que constitui o clima de trabalho num hotel. O que a pandemia fez foi agir como acelerador dessas preocupações, neste momento nota-se muito mais que as pessoas estão quase a penalizar as empresas que não têm essas preocupações no seu dia a dia.
“Os estudantes portugueses apercebem-se como o seu nível de profissionalismo e de conhecimento tem uma importância cada vez maior”
A Les Roches continua a ter uma quota elevada de estudantes portugueses?
Temos entre 10% a 15% de estudantes portugueses, o que significa que é a percentagem mais elevada depois dos estudantes espanhóis. É preciso notar que, entre os nossos 1.220 estudantes temos 80 nacionalidades, o que significa, pela percentagem, que os portugueses estão a demonstrar que Portugal está a evoluir muito bem no turismo em geral e na hotelaria em particular. Penso que existe uma estratégia ao nível do país, sustentada por pessoas que apostaram numa mesma linha e em muitos dos fóruns em que costumo intervir na Europa, existe um reconhecimento de que Portugal, nos últimos cinco a seis anos, fez um esforço muito grande e traçou uma estratégia muito clara de aposta no turismo. Os estudantes portugueses apercebem-se como o seu nível de profissionalismo e de conhecimento tem uma importância cada vez maior.
E a Les Roches também aposta muito em Portugal, estando presente em todas as feiras onde podem dar a conhecer a vossa oferta…
Essa é uma estratégia já com alguns anos e que é para continuar, até porque Espanha, Portugal, França e Itália são países que estão muito próximos entre si e o nosso vinculo com Portugal nasce quase por inércia e agora, que percebemos que os portugueses estão a marcar uma tendência no setor e que o desenvolvimento do turismo em Portugal está a ser muito forte, essa aposta tem que ser maior. É claro que, por proximidade geográfica e também cultural, o campus de Marbella é o que capta sempre mais estudantes portugueses, embora na Suíça também haja muitos.
A falta de recursos humanos é uma preocupação
Penso que não é só em Portugal mas por cá, neste momento, há uma enorme carência e recursos humanos no turismo. Na sua perspectiva, os jovens não estão a aderir ao turismo como carreira de futuro, porquê?
Esse é exatamente o tema que vou abordar na minha intervenção [Congresso da ADHP], onde vou elencar seis razões daquilo que chamo “guerra do talento”. Na minha perspetiva não há falta de talento, o que há é que esta pandemia tornou real para as pessoas uma certa debilidade do setor porque esta atividade foi muito mais afetada, levando a uma fuga de talentos para outras áreas. As pessoas sentiram muito mais medo e não vamos conseguir recuperar muitas das que saíram para outros setores. Este foi um efeito que veio somar-se a outros que já existiam e que faziam com que esta tendência de fuga de talentos já se sentisse há algum tempo.
No caso de Portugal, o que os portugueses devem saber é que o mercado do turismo está de novo num momento muito alto e que, por isso mesmo, a perspetiva de futuro é muito forte. Quando um português está a falar de turismo tem que pensar global e não apenas em Portugal porque no que toca ao turismo, o mercado é muito amplo que está em crescimento acelerado.
Tendo em conta o peso do conhecimento que a vossa escola tem, a consideração que granjeou internacionalmente, entende que não haja um reconhecimento oficial dos cursos da vossa instituição?
Essa é uma boa questão, até porque há vários tipos de reconhecimento, o europeu, o americano… Os nossos cursos são reconhecidos pela NeChe, a entidade que também realiza a acreditação académica da Universidade de Harvard, de Yale ou do MIT mas muitas pessoas perguntam porque é que não fazemos parte de Bolonha e o problema está nas muitas condicionantes que Bolonha tem – há condicionantes ao nível dos países, das próprias Universidades e os nossos programas são muito diferentes, são muito profissionais, muito ligados à indústria hoteleira. Por isso temos uma escola que é internacional, que tem sedes na Suíça, em Espanha e na China e só uma delas está no raio de ação de Bolonha, que é a escola de Espanha. Ora, condicionar toda a rede das nossas escolas, todo o nosso modelo a nível mundial com base nas diretrizes de um único país, não nos faz muito sentido.
Na minha perspetiva, os sistemas de formação europeus deveriam ter uma abertura maior – por exemplo, os sistemas americanos são muito mais abertos, permitindo que sejam as próprias Universidades a dirigir as suas propostas. No sistema tradicional europeu, como é o caso do caso do espanhol e do português há demasiado envolvimento do setor público e há pouco conhecimento do valor daquilo que nós estamos a fazer.