No ensino “vende-se uma imagem bonita” mas no mercado de trabalho “muitos encontram uma noite de terror”

Raul Ribeiro Ferreira está desde há muito ligado à formação, lecionando em várias escolas de turismo. Do ensino do turismo mantém uma visão crítica considerando-o desadequado à realidade do que é o trabalho no setor. Ao Turisver afirmou que o ensino não é atrativo, como os salários também não o são e, na sua opinião, continuam a ser as remunerações a grande causa da falta de profissionais. Por isso, diz, há que perceber porque é que se está a pagar mal.
O Raul está há muitos anos ligado á área da formação. Começava esta segunda parte da nossa conversa por lhe perguntar, a que entidades e a que projetos está atualmente ligado?
Estou a tentar acabar o doutoramento que é sempre um problema na vida de um professor. Estou na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, onde leciono tanto na área da licenciatura como do mestrado e onde tenho vindo a aumentar as minhas responsabilidades em termos de disciplinas. Estou também ligado à Universidade Lusófona onde dou aulas ao nível da Licenciatura e também leciono uma cadeira, na área do economato à turma de Gestão de Restauração e Catering, no Instituto Politécnico de Leiria, concretamente na Escola Superior de Turismo e Tecnologias do Mar, em Peniche.
A Escola de Peniche é uma escola muito particular quando comparada com as outras?
É um projeto-tipo porque juntam a área do turismo com a do mar, o que permite aos investigadores fazerem uma série de experiências. Fazem-se ali uma série de investigações, por exemplo com as algas e com a cavala e já temos uma série de chefes de cozinha que fazem investigações nessa área e com sucesso. Como existem ali duas áreas de conhecimento diferentes, elas podem complementar-se e disso nascem trabalhos muito interessantes e inovadores e o turismo precisa disso. Ainda há a tendência de se olhar para o turismo de uma forma muito individual – e eu, se estivesse na gestão, provavelmente também o faria – sem interagir com outras áreas do conhecimento mas se conseguirmos fazê-lo ganhamos com isso.
“(…) faço “mea culpa” porque faço parte do sistema. Um professor da escola da Ponte, José Pacheco, quando se reformou fez um artigo para um jornal em que dizia que temos alunos do séc. XXI, professores do séc. XX e um sistema de ensino do séc. XIX – isso é verdade e agora temos mais um problema que se chama ChatGPT”
Pelos anos que tem de escolas de turismo, como aluno e como professor, tem sempre uma visão algo crítica da formação que se faz. Continua a pensar assim?
Continuo e faço “mea culpa” porque faço parte do sistema. Um professor da escola da Ponte, José Pacheco, quando se reformou fez um artigo para um jornal em que dizia que temos alunos do séc. XXI, professores do séc. XX e um sistema de ensino do séc. XIX – isso é verdade e agora temos mais um problema que se chama ChatGPT. Uma sequência de acontecimentos novos tem vindo a mudar radicalmente o sistema de ensino e nós ainda não conseguimos perceber como é que nos vamos adaptar e continuamos a dar aulas em modo explicativo: chegamos e explicamos a matéria sendo os detentores do conhecimento e é preciso mudar isso. Os alunos já não querem saber onde é o rio, o apeadeiro, etc. porque já não precisam de saber isso. Eu sei ver um mapa mas o meu filho não sabe e se tentar explicar-lhe o que me diz é que não precisa de saber isso.
Temos que perceber para onde é que vai o ensino e se continuarmos a achar que nós é que estamos corretos e que os alunos estão todos mal, o ensino vai correr mal. No nosso setor junta-se ainda a perceção que os alunos têm de que estão ali a ensinar-lhes coisas que depois não acontecem quando chegam ao mercado de trabalho. Na verdade, nós “vedemos-lhes” uma imagem que é bonita e depois muitos deles chegam ao mercado de trabalho e encontram uma “noite de terror”. Não é possível convencer alunos que estudam 10 anos, com cursos de formação profissional, cursos superiores e mestrados, a chegarem ao mercado de trabalho para ganharem 800 euros – o que eles sentem é que não valia a pena terem estudado, que bastava terem tirado o 10º ano.
Para além disso, como temos uma quebra no número de alunos a nível nacional e em particular ao nível do turismo, temos o problema de a formação profissional, as licenciaturas e os mestrados se repetirem: um aluno que tire um curso profissional de cozinha, depois um curso superior e de seguida um mestrado, vai repetir três vezes o arranque da mesma coisa. Temos que repensar este modelo porque se não dermos mais-valias aos alunos eles não vão fixar-se, vão estudar para outros países.
Conseguir captar alunos da Europa é sempre importante porque queremos estar nos rankings e a visibilidade é relevante mas se calhar temos que olhar para os PALOPs como espaço de matéria-prima para ir recrutar alunos para o ensino. Claro que temos que ter algum cuidado com o nível dos alunos que vamos recrutar mas se fizermos uma seleção correta se calhar conseguimos arranjar um parque de recrutamento interessante nesses países que pode complementar-se com outros vindos do resto da Europa e que são o sonho de muitas escolas – daí a aposta nos cursos em inglês.
Os alunos que hoje são formados continuam a ter o mercado de trabalho todo aberto, até porque há falta de profissionais qualificados?
Argumenta-se agora que o problema não são só os salários mas também os horários, por este ser um setor em que se trabalham muitas horas, em que há que trabalhar ao fim de semana – o que é verdade -, e que isso tem que ser mudado para não prejudicar o relacionamento com a família… A verdade é que podemos pôr o foco nesse tipo de problemas mas na minha opinião é um foco errado, por uma razão: não me consta que as pessoas que trabalham na televisão não o façam ao fim de semana ou que quem trabalha nos hospitais não trabalhe ao fim de semana. Todos os setores que laboram 24 horas e sete dias por semana têm pessoas a trabalhar à noite, aos fins-de-semana e feriados, por isso o foco não pode ser esse. Nós não vamos passar a fechar os hotéis aos fins de semana, não vamos fechar para férias em agosto – isso não vai acontecer nunca e como não vai acontecer escusamos de estar a dizer às pessoas que vamos mudar o Código de Trabalho para que isso um dia venha a ser possível, porque não vai ser.
“O que eu pergunto é se há alguma área que tenha ganhado tanta produtividade como nós ganhámos?“
Como é que se explicam essas situações laborais aos alunos, futuros profissionais da área?
Nós, professores, costumamos brincar e perguntar aos alunos se querem ter um emprego em que o número de telefone é “24-7-365” ou se preferem um que tenha o número “8-5-234”. É claro que ninguém vai trabalhar 24 horas mas isto é dito no sentido de estar disponível mentalmente para trabalhar neste setor. Quem é chefe de cozinha, chefe de receção, governanta… acaba por, naturalmente, nunca trabalhar oito horas porque tem que estar apto quando chega um cliente no último momento para atender e isso faz parte das profissões na área da hospitalidade. Afinal, hospitalidade é isso mesmo, é estar com o cliente no momento certo, no momento em que o cliente necessita. Depois, evidentemente, há que saber conjugar isto com a vida privada.
Mas os aumentos de salários anunciados por muitas empresas hoteleiras não estão a fazer efeito nas pessoas?
O foco tem de ser o de perceber porque é que se está a pagar mal porque na verdade é que o rácio de funcionários que cada hotel tinha por quarto há algumas décadas era muito maior do que é hoje, um cinco estrelas tinha praticamente dois funcionários por quarto. Hoje temos 0,75 ou um nos cinco estrelas, nos três estrelas temos 0,25. O que eu pergunto é se há alguma área que tenha ganhado tanta produtividade como nós ganhámos?
Há 30 anos, quando comecei a minha carreira, havia chefes de cozinha e diretores que ganhavam muito mais do que ganham hoje em valor real e a profissão de chefe de cozinha não era tão reconhecida como é hoje. Por isso é preciso perceber para onde é que está a ir o dinheiro.
Está a dizer que o dinheiro é mal distribuído?
Claro que a primeira razão da existência de uma empresa é retribuir o capital ao empresário mas o segundo objetivo é redistribuir o dinheiro pela sociedade – por quem trabalha -, e as coisas têm que ser feitas de uma forma equilibrada. O empresário não consegue servir à mesa nem fazer camas sozinho, precisa de uma equipa que o faça e nós não podemos estar a apoiar o funcionamento dos nossos hotéis em mão de obra que mais ninguém quis e que vem para cá porque é o sítio mais fácil para entrar na Europa e que assim que têm um visto vão para outros países.
Temos um outro problema que são os hotéis de pequena dimensão onde as margens de lucro são muito mais pequenas. Por muito que me custe dizer, os hotéis de pequena dimensão servem sobretudo para formar, para ensinar as pessoas que depois passam para os grandes hotéis para que haja uma evolução na carreira. Mas se os grandes pagam menos do que os pequenos não há progressão e não conseguimos cativar as pessoas para o setor.
Continua a discutir-se sobre carreiras profissionais que não existem
As questões do emprego estão na ordem do dia em termos de discussão. Na sua opinião essa discussão tem sido feita com alguns parâmetros diferenciados ou continuam a discutir-se as mesmas questões de sempre?
Eu acho que se continua a discutir a mesma coisa. Toda a discussão que o Governo propõe começa por ser sobre carreiras profissionais que não existem. As associações têm que negociar acordos com os sindicatos baseando-se em cozinheiros de 1ª, de 2ª, de 3ª, empregados de mesa de 1ª, de 2ª e de 3ª e isso não existe, portanto parte-se logo de uma base errada. É preciso coragem e vontade para pensar quais são as novas formas de discutir, se é, por exemplo, a partir dos níveis de formação.
Sabemos que a hotelaria e a restauração acabam muitas vezes por ser um escape para pessoas que não cabem noutras atividades porque não têm formação e nós conseguimos ir colocando essas pessoas na copa, na manutenção, etc.. Acho que não devemos perder esse papel mas isto não significa que não possa ser revisto ou até espelhado nos contratos coletivos: quem entra sem formação vai para uma determinada categoria porque é preciso dizer às pessoas que fizeram formação profissional, ensino superior e mestrado, que isso tem alguma visibilidade na sua carreira, que isso os valoriza em termos de carreira profissional.
Não podemos ter um jovem com um mestrado a receber o mesmo que outro que chegou apenas com o 12º ano. Enquanto não conseguirmos resolver estas questões não vamos resolver o problema da atratividade no nosso setor.
Leia aqui a 1ª parte da entrevista a Raul Ribeiro Ferreira.