Na SAL “nós somos arquitetos do turismo de caminhadas”, afirma José Pedro Calheiros
Nesta segunda parte da entrevista a José Pedro Calheiros, diretor-geral da SAL – Sistemas de Ar Livre, falamos de walking, da sua estruturação enquanto produto turístico e do perfil do turista de caminhadas. Abordamos, também, temas como a capacitação dos destinos turísticos e o posicionamento das empresas de animação no mercado, entre outros.
Como é que SAL se tornou uma empresa de criação de produto turístico?
Nos últimos anos, os turistas foram ficando cada vez mais conhecedores e, como tal, cada vez mais independentes. Porque viajam por si próprios, de forma independente, é preciso que haja empresas que lhes possam facilitar aquilo que eles querem ver, conhecer, desfrutar. Ou seja, foram sendo precisas estruturas para que as pessoas, autonomamente, façam atividades de acordo com os seus interesses particulares – estruturas para caminhadas, para turismo militar, turismo cultural, etc.
Muitas das coisas não foram bem pensadas porque foram pensadas por ideólogos municipais, gente ligada ao desporto, pessoas que conhecem tudo do pequeno mundo em que se inserem mas desconhecem o que há e o que se faz para lá dele.
Quando fui pela primeira vez ao World Travel Market, em 2005, fiquei espantado. Voltei muitas vezes nos anos seguintes, não ia vender nem comprar mas ia aprender e foi com o que aprendi que em 2010 redefini a estratégia da SAL, com a intenção de passar para a estruturação de produto. Não foi um trabalho fácil mas hoje é o que fazemos, nomeadamente para o Turismo do Alentejo e para um conjunto de municípios, ainda afinando algumas coisas mas já chegando a novos patamares.
Como é que as Câmaras recebem essas ideias?
Há de tudo. Até 2015 achavam que era uma coisa extemporânea. Lembro-me que em 2010, inspirando-me no exemplo das low cost, propus a alguns municípios a criação de redes de caminhadas nos seus territórios, que eles tinham que apoiar e o resultado foi nulo. Em 2015, o presidente da Câmara de Marvão, depois de lá ter feito um festival de caminhadas, entendeu finalmente o projeto que eu lhe tinha proposto cinco anos antes.
Um dos problemas dos municípios são as idiossincrasias, temos presidentes de Câmaras com visão, que entendem o projeto e procuram financiamentos para ele mas há outros que encaram os orçamentos municipais como se fosse dinheiro seu, além de que têm agendas políticas fechadas e pensam primeiro “que interesse tem isto para as pessoas que votam em mim?”. Por outro lado, tecnicamente, há um grande problema de formação turística, as pessoas não conhecem o que se faz por esse mundo fora.
Hoje, penso que mereço a confiança da Entidade Regional de Turismo do Alentejo, pelo trabalho que tenho desenvolvido, preencho uma lacuna que existia, por exemplo ao nível do walking que há 10 anos não passava de uma miragem na região. Hoje temos um território todo infraestruturado e em crescimento.
Perfil dos turistas que procuram o produto Walking
Que tipo de turista é que opta pelo produto caminhadas? Muitas vezes pensa-se que isso é apenas para peregrinos ou para quem não tem muitos meios…
É o contrário. Não estamos a falar do novo-riquismo da Comporta mas é um turista muito qualificado intelectualmente que não quer caminhar por caminhar porque para isso tem a passadeira do ginásio. É um turista que quer saber, que quer conhecer, que tem uma disponibilidade financeira elevada e que relaciona este tipo de atividades, com pouco exigência física, com outro tipo de experiências, por exemplo ao nível da gastronomia, do artesanato e que depois quer ir calmamente relaxar para o hotel. Não estamos a falar de hordas de gente, mas de pessoas que vêm em família, casais e mesmo pessoas isoladas e que pagam o que lhes é pedido.
Claro que há outros tipos de caminhantes, quando trabalhei com o turismo de Portugal na auditoria do Caminho de Fátima acabei por me cruzar com muitos caminhantes que faziam o Caminho de Fátima, que tem muito gente e como muitos outros que percorriam o Caminho de Santiago, que está sempre cheio, principalmente o Caminho de Portugal e essa experiência fez-me ficar mais ciente das diferenças entre o caminhante que é apenas peregrino e o caminhante que é turista.
O caminhante tem um nível intelectual, motivacional e cultural muito elevado, disponibilidade financeira média-alta, grande aceitação do território tal como ele é e uma maior predisposição para a diferença, para ir à tasca e não ter problema em que o prato tenha uma falha porque fazer tudo isto, estar ali, é o verdadeiro turismo de luxo para ele, porque é o autêntico.
No meu trabalho, levo muito a sério as questões da sustentabilidade, já o fazia muito antes de se ter tornado uma moda.O perfil do caminhante turista tem também muito a ver com isto porque são pessoas com um grande nível de responsabilidade social, preocupam-se com as questões da sustentabilidade, com o território, com questões sociais.
Há 15 anos, eram principalmente pessoas acima dos 45 anos mas hoje já não é assim, Já temos gente na casa dos 20 anos que pode não ter tanta disponibilidade financeira porque ou é estudante ou está em início de carreira, mas tem as mesmas preocupações, mais: procura acumular experiências reais ao nível do conhecimento do território, da gastronomia, dos vinhos e do saber porque sente que isso é um recurso para voltar mais tarde. E se hoje este jovem fica num alojamento local, como há uns anos se ficava no parque de campismo, quando regressar já ficará num hotel.
Uma grande parte deste mercado de turismo de caminhadas quer autonomia, e para isso precisamos de estruturas pré-feitas, bem auditadas, com boa conservação, com bons planos de ativação de marca, ou seja, tem que se criar a atração, com bons programas de capacitação de destino. É inacreditável que uma pessoa que gere um alojamento que tem um percurso pedestre que passa quase à sua porta e nunca o foi fazer? Como é que uma pessoa pode dizer que um vinho é bom se não bebe?
Muitas vezes no turismo, há uma falha ao nível de quem estrutura os territórios porque não capacita o destino, não explica a quem está no destino que aquilo existe porque um percurso pedestre não é uma coisa evidente como um restaurante. As fases que se seguem à estruturação da oferta são a capacitação do destino – falar com toda a gente e envolvê-los para que sintam aquilo como deles – depois há a manutenção.
“… para responder diretamente à pergunta: não, não há outras empresas de animação turística que tenham esta dualidade. O que é que a SAL traz para a estruturação de produto? Vinte e cinco anos de experiência com os caminhantes.”
Os vossos concorrentes em termos de empresa também trabalham esses percursos da mesma maneira que a SAL trabalha?
Nós concorremos, na parte da operação, com outros operadores que fazem caminhadas mas na fase da estruturação concorremos com outro tipo de empresas: de obras, de sinalética, que o que fazem é cumprir o caderno de encargos que foi desenhado pelo professor de educação física que trabalha no município.
A Junta de Freguesia do Torrão criou uma rede de percursos pedestres, penso que seis ou sete num total de 70Km e gastou 200 mil euros, mas não tem capacitação do destino, não tem ativação de marca, não tem atividades de promoção e não tem vendas, tanto que agora falou com a Entidade Regional de Turismo em busca de apoio. Isto porque fez um concurso que foi ganho por uma empresa de obras que “plantou” plástico na natureza em quantidades industriais através de um conjunto de placas com a marcação. Na rede Transalentejo, como em todas as redes estruturadas pela SAL, não há qualquer estrutura artificial. Cada baliza de plástico com a marcação custa 60€,por isso não é difícil que uma rede com sete percursos e 70Km tenha custado 200 mil euros
Portanto, para responder diretamente à pergunta: não, não há outras empresas de animação turística que tenham esta dualidade. O que é que a SAL traz para a estruturação de produto? Vinte e cinco anos de experiência com os caminhantes. Sabemos o que os caminheiros gostam, sabemos como é que vêm as coisas, como é que compram, sabemos como é que os mercados internacionais compram. É um trabalho lento mas o que a SAL tem é esta capacidade de ter evoluído da operação para a estruturação.
Agora concorremos com as empresas que fazem passadiços, que fazem madeiras e plásticos e dizem que é a mesma coisa, mas não é. Se queremos construir uma casa contratamos um arquiteto mas também podemos contratar um mestre de obras. É a mesma coisa? Não. O mestre de obras faz uma casa que não cai mas é um cubo com janelas e porta. Quando um arquiteto projeta uma casa o resultado é muito diferente. A diferença é esta mesmo: nós somos arquitetos do turismo de caminhadas.
Que outros produtos é que, tendencialmente, as pessoas estão hoje a procurar?
Hoje estamos a viver uma pressão mediática em muitos aspetos e o turismo é um terreno muito fértil para o mediatismo e por isso há uma concorrência enorme, uma concorrência que nem sempre é leal. Na minha atividade, podemos ter um trilho fantástico, com uma grande exigência física, lindíssimo, com um menir ou uma anta lá no meio, uma vegetação incrível, mas tem que se chegar lá às 09h00, sair às 17h00, todo arranhado, picado… depois há outro onde se chega de carro a 300m, no meio está um baloiço, uma moldura, um passadiço, um miradouro panorâmico, uma estrutura transparente e o resultado do que se mostra é mais simples, mais rápido e alimenta mais o ego da pessoa que teve não sei quantos “gostos” na publicação ou conseguiu vender a publicidade que fez ao restaurante lá do sítio ou ao hotel… Não estou a dizer mal dessas coisas, o que digo é que há uma falsa perceção do que é o turismo de natureza, o turismo cultural.
Os números que eu tinha antes da pandemia diziam que na Europa, Estados Unidos e Canadá há cerca de 120 a 150 milhões de caminheiros. Um caminheiro amador é uma pessoa que duas vezes por mês se dispõe a pegar na sua mochila e a fazer uma caminhada de 12 a 14Km, portanto, é um mercado com uma dimensão muito razoável. Sabendo que estas pessoas gostam de comer bem, ir a sítios culturalmente interessantes, ficar em boas unidades hoteleiras, experimentar o que é local, isto bate certo com territórios como os que temos no Alentejo, no Centro, no Norte. É claro que temos que estar preparados para receber esses turistas e para isso precisamos de ter estruturas no terreno, serviços de apoio e os próprios guias, cada vez têm que ser menos guias turísticos e mais agentes de enquadramento local.
Tenho um pedido de um grupo para a Rota Vicentina e o que me é pedido não é que ande com eles até porque a rota está toda marcada, é para ir com a carrinha, levar-lhes a bagagem, estar em certos locais para lhes dar água, sealguém com mais idade precisar é abortar aquela etapa para ela e levá-la para o alojamento, chegar primeiro que eles ao restaurante, escolher os vinhos… ou seja, um grupo deste tipo não necessita de um guia de animação turística para o guiar no caminho, o que precisa é de um facilitador para que tudo corra bem.
Penso que há um mercado fantástico num outro conceito que são os guias locais mas as autoridades locais têm que perceber que têm que andar com essas pessoas “ao colo”. Por exemplo, um grupo de uma universidade sénior imagina um percurso pelo Alentejo, ao longo do qual quer uma série de museus e património, almoçar em determinados locais e entra em contacto com o município para ter apoio nas visitas e o município disponibiliza um técnico municipal para fazer esse trabalho, quando o que o município deve fazer é indicar as alternativas que existem em termos de guias ou de empresas – até podiam ter uma espécie de escala em que a cada vez que fosse necessário indicavam um ou outro diretamente.
Sei que é muito participante na Entidade Regional de Turismo do Alentejo. E no associativismo, está envolvido?
Não me envolvo no associativismo dos guias turísticos, de resto nem sequer sou guia, dentro da linha mais tradicional de um guia de turismo, embora o faça porque a lei o permite apesar de me situar num patamar mais de coordenação. Quanto à região do Alentejo, fui durante 12 anos, diretor da Agência Regional de Promoção Turística do Alentejo, onde entrei como diretor em 2007 a convite do presidente Vítor Silva. A SAL é sócia da Agência Regional de Promoção, sócia fundadora da Rota Vicentina, somos sócios da Associação Turismo de Lisboa e da Associação Baía de Setúbal, que tem uma escala mais local mas tem uma relação estreita com a ARPT do Alentejo. Fui também sócio da APECATE e até diretor dos órgãos sociais durante alguns anos e saí porque acho que a APECATE mudou de rumo e de agenda, tendo deixado de me identificar com essa agenda.