Muitos empresários pensavam que o diretor seria apenas uma boa “dona de casa”

A poucos dias da realização do 18º Congresso Nacional da Associação dos Diretores de Hotéis de Portugal, o Turisver entrevistou o seu presidente, Raul Ribeiro Ferreira, para fazer um balanço da atividade da Associação nos últimos anos em que o grande problema residiu na desregulamentação da carreira de diretor de hotel.
O Raúl Ferreira já está há nove anos a presidir à Associação dos Diretores de Hotéis de Portugal…
Sim, e são nove anos em que houve várias mudanças ao nível do setor. Passámos por várias experiências, por épocas diferentes, umas em que houve maiores dificuldades, outras de maior alívio e crescimento. Passámos a primeira crise que foi até 2015 e mais recentemente a que foi provocada pela pandemia. Passámos ainda por outra alteração, que nos tocou profundamente, que foi a da desregulamentação das profissões que, no caso dos diretores de hotéis, trouxe uma revisão dos salários em baixa.
Estamos agora a passar por uma nova fase em que, com a entrada dos grupos financeiros – fundos e pools bancárias – na hotelaria, a profissão volta a ser valorizada e volta a ter uma importância que, infelizmente, alguns grupos portugueses não lhe davam.
Neste percurso, que pontos salienta como mais relevantes para a Associação?
O primeiro foi o facto de termos conseguido ultrapassar o trauma causado pela desregulamentação. Quando nós tomámos posse, era nítido dentro da Associação – da qual eu já fazia parte porque já estava na direção anterior – que existia alguma desorientação sobre qual seria o caminho a seguir no futuro enquanto Associação, porque a classe que defendíamos tinha deixado de existir e não sabíamos muito bem como é que isso iria ser entendido pelos profissionais. Foi um marco importante termos conseguido, na altura, passar esse trauma e termos ido buscar um novo rumo com as escolas, termos trazido o ensino para dentro da Associação e termos feito parcerias com a certificação das escolas ligadas à gestão hoteleira, conseguindo depois fazer a certificação do próprio diretor hoteleiro, que é um processo que não está terminado e que iremos ter de finalizar.
Outro marco teve a ver com a importância dos recursos humanos e a visibilidade que conseguimos trazer para o problema da falta mão de obra. Esta é uma situação que estamos a viver atualmente e que era um problema anunciado. A forma como nós lidámos com as pessoas, a maneira como nós olhávamos para o valor que acrescentamos à vida de um funcionário que trabalha connosco dentro de um hotel, tinha que ter consequências a médio prazo. Talvez a pandemia tenha agravado esse problema mas ele estava há muito anunciado e nós há muto que vínhamos alertando para isso.
“A desregulamentação acontece porque havia empresários em Portugal à frente dos hotéis que achavam que os hotéis valiam pelo edifício, pelo património que ali estava e que não era preciso muito mais. No fundo pensavam que o diretor seria apenas uma boa “dona de casa” que tomava conta do hotel”
Ao longo destes anos houve altos e baixos na relação entre o investidor / empresário e o diretor hoteleiro? A exigência do empresário para com o diretor hoteleiro aumentou?
Houve alterações, sim. A desregulamentação acontece porque havia empresários em Portugal à frente dos hotéis que achavam que os hotéis valiam pelo edifício, pelo património que ali estava e que não era preciso muito mais. No fundo pensavam que o diretor seria apenas uma boa “dona de casa” que tomava conta do hotel, que recebia os clientes à porta… Na verdade, grande parte desses empresários acabou por pagar com a falência das próprias empresas este tipo de pensamento, porque não perceberam que o investimento que hoje está por trás de um hotel exige uma gestão cada vez mais qualificada, mais exigente. Por isso, durante essa fase, houve até algum desrespeito pelo diretor de hotel. Lembro-me de haver empresários que diziam que era mais importante o chefe da cozinha do que o diretor, sendo por isso normal pagar mais ao chefe da cozinha do que ao diretor do hotel, e isso causou alguma fricção.
Hoje, com o fim do dinheiro fácil, percebe-se que estamos a viver uma nova fase em que há o entendimento de que há que retribuir o capital investido e isso passa por uma gestão mais cuidadosa e mais qualificada. Daí ter-se voltado a dar importância ao diretor, o que ainda não se reflete em termos financeiros – ainda há muitos diretores a ganharem pouco para a função que exercem e para as responsabilidades que assumem, mas devagarinho começam a ganhar uma nova importância. Um hotel representa milhões de euros de investimento e tem que ser rentabilizado, pelo que começa a haver reconhecimento pelas várias profissões dentro do setor.
A ADHP é uma associação de toda a gestão hoteleira
Mas a ADHP, pelos seus estatutos e pelos seus associados, é muito mais abrangente, não se fixa apenas no diretor de hotel. A Associação tem no seu seio, por exemplo, diretores de alojamento?
Nós somos uma Associação de toda a gestão hoteleira, de toda a equipa que dirige um hotel e isso abrange os diretores dos vários departamentos, como o F&B, o alojamento… Embora a denominação seja Associação dos Diretores de Hotéis, a ideia é representar todas as pessoas que dirigem os hotéis.
Com a alteração dos estatutos que foram aprovados no dia 21 de março, o caminho aponta nesse sentido. Passamos a ter um Conselho Deontológico que vai criar o Código Deontológico do diretor de hotel e das várias profissões e um Conselho Pedagógico para fazer a ligação às escolas de uma forma mais ativa e constante, de modo a conseguirmos influenciar, de forma positiva, toda a cadeia de formação, desde que os alunos decidem seguir gestão hoteleira até ao momento em que chegam ao mercado de trabalho.
Se conseguirmos chegar à formação de uma Ordem, a ideia é que as escolas façam parte integrante desse processo, da Ordem e da formação. Pretendemos que exista uma interligação e que os empresários comecem a perceber que os profissionais certificados são um garante da qualidade.
A abertura à estrutura de direção que compõe uma unidade hoteleira tem dado um imput crescente à Associação?
Tem, até porque são pessoas mais novas que vão entrando e vão refrescando as nossas ideias. Ao fim destes anos começamos a sentir que um dia já fomos futuro e que agora é preciso que os outros, que hoje são o futuro, tragam as suas ideias e experiências para dentro da Associação, até porque é isso que faz com que as entidades permaneçam vivas e atuais.
Essa abertura está muito presente nos Xénios, que premeiam os mais jovens?
Os Xénios envolvem um processo interessante, até em termos de estudo porque é o único prémio que distingue pessoas, os outros premeiam empresas. Trata-se de um reconhecimento do trabalho efetuado e acho que é gratificante para os profissionais que isso aconteça porque dá visibilidade àquilo que fazem e retira a ideia de que o que fazem dentro de um hotel não é visível e não é reconhecido.
“Como é que vamos dizer a um jovem que venha para a receção de um hotel e que depois subirá na carreira, quando apenas é necessário um chefe de receção? A dimensão média de um hotel em Portugal ronda os 71 quartos e agora até baixou para 69, segundo os dados da Deloitte e para isso só é preciso um chefe de receção”
A evolução que tem acontecido na última década, com o aparecimento de muitas unidades novas e diferenciadas, espalhadas um pouco por todo o país, reflete-se na necessidade de mais profissionais?
Acho que vamos ter um problema em que é preciso pensar. É óbvio que não podemos fingir que não existe um problema ao nível dos salários. Dizer a um jovem que esteve uma série de anos a estudar e a quem pedimos que fale várias línguas, que abra mão dos horários de vida e depois oferecemos 1.000€ ou, no caso dos diretores, 2.000€, gera problemas. Mas, mais do que o problema dos pagamentos, temos um problema de dimensão das empresas em Portugal. Como é que vamos dizer a um jovem que venha para a receção de um hotel e que depois subirá na carreira, quando apenas é necessário um chefe de receção?
A dimensão média de um hotel em Portugal ronda os 71 quartos e agora até baixou para 69, segundo os dados da Deloitte e para isso só é preciso um chefe de receção. Não se conseguem fixar jovens, e muito menos trazê-los para Portugal, quando não têm uma perspetiva real de subirem na carreira em tempo útil. Não faz mal a ninguém começar pelo restaurante ou pela receção, mas é necessário que haja uma evolução e com a dimensão dos nossos hotéis não conseguimos isso.
Os jovens fazem Erasmus, fazem estágios profissionais porque nas escolas são obrigadas a mandar uma percentagem grande dos jovens, pelo menos uma vez, para fora do país. Lá fora, contactam com unidades de grande dimensão, com centenas de quartos, vários restaurantes e bares, turnos nas receções, o que lhes permite ter uma perceção de carreira diferente e mais apelativa, com perspetivas de evolução em tempo útil.
Há pouco tempo esteve uma companhia de cruzeiros a recrutar em Portugal e em pouco mais de uma semana levou 2.000 jovens, ora isso é praticamente o que sai do ensino superior num ano.
Temos assistido a muito investimento de forma geral mas também a muito investimento estrangeiro, seja a nível de empresas seja de fundos. O que é que a Associação nota em termos do relacionamento dos nossos profissionais com esses grupos internacionais?
Nós temos duas realidades de grupos a operarem em Portugal. Uns, são fundos financeiros em que os diretores têm uma grande autonomia porque as preocupações dos fundos têm mais a ver com os resultados operacionais do que com a gestão do quotidiano Temos depois outra realidade em que as sedes decidem quase tudo e os diretores são mais diretores de serviço que têm que pôr em prática as ordem que emanam das sedes.
Além disso, ainda temos uma operação grande ligada a proprietários privados e aí as situações vão descambando mais do que seria desejável, principalmente para os próprios donos porque quando não se deixa os profissionais trabalhar e se olha para um hotel como se fosse a própria casa, os resultados no fim do mês castigam os proprietários.
Amanhã no Turisver.pt pode ler a segunda parte da entrevista com Raul Ribeiro Ferreira, presidente da ADHP, onde poderá ler entre outros temas:
- O papel do Turismo de Portugal na formação
- Análise da situação sobre a formação profissional e académica
- Antevisão do Congresso da ADHP
- Ponto de viragem na gestão hoteleira