Maria José Silva não descarta maior envolvimento nas agências de viagens: “Não digo jamais”, afirma
Em março de 2022, a RAVT deixava de existir enquanto agrupamento de gestão e a sua CEO, Maria José Silva, passou a focar-se noutra atividade que também lhe está no ADN, o ensino. Atualmente a lecionar na Universidade de Évora como professora convidada, Maria José Silva não está totalmente afastada do setor, onde mantém a ZENTravel e atividade de consultoria. Do passado recente ao futuro próximo, assim podemos definir a conversa que o Turisver teve com Maria José Silva.
Para iniciar esta nossa conversa, eu gostava de recuar um pouco no tempo para saber como é que foi a vida da Maria José Silva após a integração das agências da RAVT na GEA?
Primeiro, foi tentar que as agências sentissem um mínimo de impacto, até porque já tínhamos vivido o período da pandemia com muitas mudanças ao nível das empresas, da estruturas e das equipas. Em 2022, as coisas ainda não estavam estáveis e por isso o que se tentou foi que as agências sentissem o mínimo de impacto possível.
Em termos da forma de trabalhar e mesmo no que se refere ao tipo de agências – são agências independentes mas com mais experiência – a GEA era o agrupamento mais semelhante àquele que tínhamos e por isso tentámos fazer uma migração muito soft, acompanhando as agências desde os primeiros contratos, as primeiras burocracias, os acessos que tiveram que fazer, transmitindo também algum feedback às equipas da GEA sobre o que era a RAVT para que eles pudessem acolher bem as agências e acho que isso foi percetível.
Nos primeiros seis meses não foi fácil, continuei ainda a atender agências, a esclarecê-las e a ajudá-las. Gradualmente, fui passando tudo isso para as equipas deles e passado esse tempo, quando chegámos ao verão, já estavam a produzir normalmente. A partir daí fui, gradualmente, fazendo o “desmame”, ou seja, cortei o Facebook da RAVT, depois cortei o canal de Whatsapp, dei cada vez mais espaço às equipas da GEA e as agências foram-se integrando cada vez mais.
À medida que isso ia acontecendo, ia tendo cada vez mais tempo para fazer outras coisas?
Confesso que o tempo que sobrou para fazer outras coisas foi o meu “nada” porque estava completamente esgotada. Como toda a gente sabe saí de um cancro e quando estava a começar a recuperar veio a pandemia, tendo passado dois anos a ajudar as minhas agências e isso esgotou-me. Assim que passou essa fase comecei a repor as minhas energias, a ter tempo para mim, tive umas férias como não tinha desde os 18 anos.
Em 2023 é que tudo começou a ficar esquisito para mim. Já tinha tido muitas férias e comecei a sentir falta de fazer mais qualquer coisa. Para quem estava habituada a ter uma vida a 300%, dar aulas na Universidade de Aveiro e ter a ZENTravel para me entreter, era pouco. Comecei a contactar várias pessoas conhecidas e a dizer-lhes que estava disponível para colaborar em algum projeto de trabalho mas senti muita resistência, medo da formação, medo do know-how, medo até da imagem. Isso levou-me a fazer uns tempos de reflexão. Tive uma ou outra proposta mas não senti motivação.
Ensino e formação sempre fizeram parte do ADN
Dar aulas é algo de que sempre gostou muito…
Dou aulas desde sempre, desde que trabalhei na TAP e me transformaram em formadora internacional – foram eles que me deram o primeiro certificado. Fui sempre fazendo formação, este é o 15º ano letivo em que dou aulas. Tive a oportunidade de ir para a Universidade de Aveiro, aliás estava a lá estudar, e fui mantendo sempre ao mesmo tempo a Universidade Lusófona, dei também algumas aulas no Politécnico do Porto e aceitava sempre os convites para dar aulas abertas em vários locais.
Este ano fui convidada pela Universidade de Évora e achei que era a altura ideal para aceitar esse convite, para ir conhecer outras pessoas, ir para outro local. A Universidade de Évora é a segunda mais antiga do país e agradou-me tudo o que tem em si de história e de riqueza cultural, além da equipa que é fabulosa.
Mantém a agência de viagens?
Na verdade eu mantenho a RAVT que tem ainda a área de consultoria mas como se sabe ninguém vive apenas da consultoria. Tenho atividade de coaching nas certificações da sustentabilidade e estive a ajudar nas certificações da Biosphere, apesar de ter feito a certificação da Travelife através da APAVT. Como já tinha a licença e o RNAVT, mantive o que era a marca da RAVT que era a ZENTravel, só que a ZENTravel não tinha promoção, era só uma parte burocrática que era necessária para termos acordos, para termos a IATA e para termos uma plataforma online. Portanto, decidi que ia manter a ZENTravel e vou trabalhando para não me desligar completamente do setor.
Neste momento, o olhar que tem sobre o setor das viagens em Portugal é um pouco mais de fora, embora não totalmente. Por isso pergunto se tem notado uma evolução positiva do mercado das agências de viagens?
O que me levou a querer afastar-me um pouco da área é precisamente o oposto. Não me reconheço nos últimos anos da vida empresarial nem nos movimentos das próprias agências, seja em termos da postura dos fornecedores como dos próprios agrupamentos que, na minha opinião, têm perdido toda a classe entrando num nível de excesso de concorrência até na comunicação que passam e na imagem que passam para fora do subsector das agências de viagens que, em vez de ser uma imagem cada vez mais positiva e que imponha mais respeito, parece estar a fazer o caminho inverso e isso não aporta valor às agências nem as motiva. Também sinto que todos querem passar a imagem de que são os únicos, os primeiros, os mais importantes e essa não é a imagem que deve ser passada.
“Claramente, deve-se à concorrência que existe entre os agrupamentos. Embora dinâmico porque estão sempre a abrir muitas agências, o nosso mercado é e sempre será limitado porque o país é pequeno e por isso há uma luta imensa pelas empresas e pela quota de mercado”
Esse tipo de imagem que na sua opinião está a ser passada. deve-se à conquista de quota de mercado?
Claramente, deve-se à concorrência que existe entre os agrupamentos. Embora dinâmico porque estão sempre a abrir muitas agências, o nosso mercado é e sempre será limitado porque o país é pequeno e por isso há uma luta imensa pelas empresas e pela quota de mercado.
Hoje, que estou de fora, já posso dizer que ninguém tem ideia dos investimentos que um agrupamento tem que fazer para que as suas agências possam ter determinados serviços, determinados produtos e acessibilidades. São investimentos em formação, em equipas, em dinheiro… E também não fazem ideia da quantidade de problemas surgem quando se querem implementar algumas coisas. Há tantas coisas que eles sonham e que nunca chegam a efetivar-se. Isso vê-se naquilo que tem sido prometido em vários grupos, principalmente os de agências independentes, e que depois não se torna realidade. As agências têm dificuldade em perceber isso e acham que ninguém faz nada, o que cria uma “guerra” ainda maior.
Considera que hoje as agências de viagens, para serem rentáveis, estão mais dependentes dos operadores do que nunca?
Acho que é o oposto. As agências de viagens começaram a aperceber-se que os operadores são fabulosos quando fazem famtrips, quando fazem festas, têm promotores muito simpáticos quando fazem visitas às agências mas quando chega a “hora H” nem todos os operadores dão o devido apoio nem o devido encaminhamento. Isso começou a sentir-se mais à medida que os operadores se foram tornando muito grandes e têm as suas quotas e acordos criados – e quanto mais pequenas forem as agências, pior é, não há o mesmo apoio.
Eu comecei a trabalhar muito jovem e trabalhava com pessoas da chamada “velha guarda”, num tempo em que a palavra valia mais do que tudo, não era preciso que um determinado acordo estivesse escrito. Agora os contratos têm sempre outra interpretação, uma alínea que se interpreta mal, os acordos e as parcerias fazem-se e desfazem-se e muitos nem sequer não são feitos cá, são feitos em Espanha e depois às vezes falha a adaptação ao mercado.
Isso quer dizer que os pequenos operadores tendem a desaparecer?
Correm esse risco se mantiverem a mesma postura agressiva dos grandes mas acho que as agências mais antigas são muto fiéis, tanto aos agrupamentos como aos operadores e enquanto esses operadores não lhes faltarem com o serviço nem com a confiança que criaram e a segurança, as agências vão sempre estar perto deles.
Alguns dos operadores mais pequenos já têm os seus clientes mais fiéis, oxalá consigam manter capacidade concorrencial ao nível dos preços e do produto. Claro que os grupos grandes são bons porque têm imenso produto, só que as estruturas por vezes são megalómanas.
“Não posso deixar de dizer que têm melhor formação, mas há duas nuances. Por um lado, as profissões do turismo são aquelas em que as pessoas têm mais formação, uma grande parte tem bacharelato ou licenciatura, outras têm mestrados, ou seja, ao nível de habilitações temos que dizer que têm muito mais formação”
As pessoas que trabalham nas agências de viagens estão hoje mais bem formadas para enfrentar os novos desafios do mundo das viagens?
Não posso deixar de dizer que têm melhor formação, mas há duas nuances. Por um lado, as profissões do turismo são aquelas em que as pessoas têm mais formação, uma grande parte tem bacharelato ou licenciatura, outras têm mestrados, ou seja, ao nível de habilitações temos que dizer que têm muito mais formação.
Contudo, o que tem acontecido é que tem havido muita gente de outras áreas a investir e a entrar no setor e não têm qualquer formação em turismo, portanto, se não tiverem uma base inicial e um acompanhamento, vão-se perdendo pelo meio. Hoje há muitas plataformas onde tudo é feito com dois cliques e é verdade que conseguem vender, mas até que ponto conseguem dar uma boa assessoria ao cliente? Até que ponto conseguem dar informação fidedigna e prestar um serviço de qualidade ao cliente? Não conseguem, os cliques na plataforma não chegam.
Cada vez mais, o cliente procura no agente de viagens essa assessoria de qualidade porque se for só para comprar, compra na internet. É necessário aportar valor e esse está na assessoria, no aconselhamento. É nas viagens mais complexas de lazer e nas viagens empresariais que mais se nota a necessidade de um agente de viagens dito tradicional e será nessas que ele irá continuar a vigorar.
Quando temos esta vertente que tem que ser trabalhada e quando analiso a formação que é dada pelos grupos, fico a pensar que não têm bem a noção do que estão a fazer. Dizem que foram os agentes que pediram esta ou aquela formação e penso que isso até acontecerá mas não me parece que seja a formação que é realmente necessária.
A maior parte das agências está no mercado há mais de 15 ou 20 anos e tem muita experiência e isso faz com que tenham muita formação. As suas equipas podem até não ter uma licenciatura mas conhecem o mercado, conhecem os destinos porque as famtrips que eram feitas há alguns anos eram muito diferentes das de hoje, as próprias companhias aéreas davam formação constante sobre os seus sistemas de tarifas, sobre os GDS.
A Maria José já esteve no movimento associativo. Olhando agora de fora, fica com a sensação de que poderiam fazer muito mais?
Não posso dizer que não há trabalho feito porque tem havido, têm sido feitas várias coisas, o que digo é que se olharmos para trás, verificamos que a ligação entre os agentes de viagens e a sua associação era maior, estavam mais próximos e participavam mais na vida associativa. Isso foi-se perdendo com os anos e hoje há imensos agentes de viagens a quem a associação não diz nada e que até nem sabem quem é quem na associação – quando muito, sabem quem é o presidente. Perdeu-se um pouco aquela ligação mais emocional que existia entre os agentes de viagens e a sua associação.
Agora vamos ao futuro: uma Maria José mais envolvida nas agências de viagens “jamais” ou se tiver um convite poderá voltar a envolver-se mais na área?
Não digo jamais, primeiro porque não se diz nunca nem sempre, depois porque se essa fosse a intenção, teria fechado a RAVT na totalidade. Dediquei demasiado tempo ao setor, foi uma paixão demasiado forte para de repente abandonar tudo e não consigo.
Neste momento, não vislumbro o que será o futuro, continuo aberta a propostas desde que sejam interessantes, que me deem valor e desde que não sintam que lhes vou fazer frente ou retirar o protagonismo. Se fosse uma questão de protagonismo, teria mantido a RAVT e não é isso que pretendo.
Se sinto que se calhar posso fazer alguma coisa pelo setor, isso sinto e tem havido muitas pessoas a dizerem-me isso, a dizerem-me que é preciso fazer algo mais profissionalizante, que é necessário voltar a dar valor aos agentes de viagens, que é preciso fazer mais coisas, que os lobbies já estão demasiado calcificados e que é necessário mudar…
Portanto, não sei o que será o meu futuro mas estou aberta a propostas que sejam aliciantes. Aliás, sou professora convidada da Universidade de Évora apenas a tempo parcial, portanto posso seguir outra linha, mas nada está claro ainda.