“Dois anos depois, parece-me que aguentámos e aguentámos relativamente bem”
Há dois anos, a OMS decretava a pandemia. O mundo fechou-se e com ele o turismo e as viagens. Para operadores turísticos e agências de viagens seguiram-se tempos incertos e inesperados. Das lutas travadas nesse período fala-nos o presidente da APAVT, Pedro Costa Ferreira.
Com a pandemia, logo no início de 2020, o turismo parou, as agências de viagens e os operadores turísticos pararam e fomos todos para casa. Qual foi, para si, a primeira leitura que teve da situação? Que era para durar?
Não. Lembro-me perfeitamente das primeiras conversas e de uma entrevista que dei na Rádio Renascença, em que a nossa primeira análise foi a de que iriamos ter alguns problemas na Páscoa. Portanto, a nossa leitura não foi, de imediato, que esta pandemia ia ter a dimensão que está a ter, porque ela ainda não acabou, era uma visão de um problema muito menor. Ainda assim, não deixa de ser curioso que, sabendo nós que iriamos ter um problema numa parte do mundo e na Páscoa, estávamos muitíssimo preocupados com a capacidade de resistência do setor e com o modo como poderia, ou não, reagir positivamente a essa situação. Mais ainda: na altura, quando fechei a entrevista com a Rádio Renascença, a jornalista acabou por me fazer, em off, um comentário extremamente delicado sobre como é que o setor iria aguentar sem a Páscoa.
Agora, dois anos depois, parece-me que aguentámos e aguentámos relativamente bem, não sem uma Páscoa mas quase sem dois anos de trabalho, já que nestes dois anos o trabalho foi sempre um pouco e intermitente.
A partir do momento em que se percebeu a dimensão da situação, quais foram os primeiros passos da APAVT, tanto junto dos seus associados como junto do Governo?
Foram vários e podemos dizer que se foram definindo ao longo dos dois anos. O primeiro problema que imediatamente tivemos que tratar foi o do reembolso dos clientes. A atividade parou, na altura apenas cobertos por seguros calculámos que havia 290 milhões de euros a reembolsar e, neste processo de reembolso aos clientes, que teve um êxito absolutamente brutal, há quatro momentos definidores.
Em primeiro lugar, o momento em que conseguimos a derrogação da lei que é um momento de salvação do setor porque conseguimos dar tempo às agências para se reconstruírem e para pagarem aos seus clientes. Com isto, salvámos as empresas e os reembolsos dos clientes, porque era claro para nós que se não salvássemos as empresas os clientes não iriam ser ressarcidos. Penso, por isso, que esse primeiro momento foi o mais importante de todos.
Depois, houve um segundo momento muito importante que teve a ver com a constituição da linha de crédito exclusiva para pagamento de vales, numa altura em que nós já calculávamos como risco cerca de 100 milhões de euros. Naturalmente, muitos problemas foram sendo resolvidos porque os fornecedores que nos deviam foram pagando e nós fomos pagando aos nossos clientes. No momento da constituição da linha de crédito conseguimos pagar mas 37 milhões de euros, o que terá sido fundamental para o terceiro momento que é 14 de janeiro de 2022, que não deixa de ser um momento de felicidade: sempre dissemos que iriamos resolver o problema ao longo do tempo e que aspetos meramente residuais sobrariam em 14 de janeiro. Esse dia chegou e ficou claro que os problemas que existiam nesse dia eram puramente residuais, embora não para as pessoas envolvidas, as quais temos que olhar com muito respeito. Vendo o setor como um todo, contamos que não haja um problema superior a dois milhões de euros, e quase exclusivamente concentrados numa empresa. Deste ponto de vista, creio que este processo decorreu como, à partida, ninguém poderia imaginar.
Depois houve um espelho desse processo que é o reembolso dos fornecedores. Desde logo, nós não pagámos porque não nos pagaram e, durante estes dois anos, temos vindo a dialogar e a apoiar os associados no sentido de serem ressarcidos pelos seus fornecedores. A maior bandeira deste trabalho foi o acordo que foi possível realizar com a TAP, ainda na anterior administração, e depois a fantástica execução desse acordo -teremos resolvido cerca de 20 milhões de euros. Hoje, mantêm-se vários processos em aberto e é natural que assim seja, mas os problemas também são residuais, pelo que também neste caso tivemos um êxito fantástico.
Três grandes êxitos no sistema de apoios do Governo
Em terceiro lugar, tivemos que tratar dos apoios e não me querendo alongar, até porque em dois anos o processo foi complexo, diria que há três grandes êxitos no sistema de apoios que o Governo dirigiu às empresas em geral, e ao turismo em particular: o apoio à retoma que permitiu apoiar a manutenção do emprego e possibilitou que menos de 2% das nossas empresas despedissem trabalhadores efetivos; o Apoiar.pt, a estrutura mais importante do apoio a fundo perdido, que foi e será necessário, na saída da crise; e o microcrédito do Turismo de Portugal, em que o TP provou que é possível apoiar de uma forma simples e com uma resposta rápida. Diria que o Turismo de Portugal foi um exemplo de boas práticas nesta questão dos apoios às empresas e a verdade é que, hoje, 166 milhões de euros foram entregues pelo Turismo de Portugal, sem juros, em 17 mil processos que apoiaram 12 mil empresas. Foi um grande êxito.
Quarto pilar da nossa atuação ao longo da crise foi a relação com a atividade seguradora. No primeiro dia estavam em risco 290 milhões de euros e a atividade seguradora estava absolutamente incapaz de ressarcir as empresas por esses sinistros. Tivemos a noção que tínhamos que tratar dos sinistros ao longo do tempo e perceber, no final, o que é que existia. A verdade é que, em 14 de janeiro de 2022, temos uma atividade seguradora que, ou pagou os sinistros que sobraram ou entrou em acordo para pagar, ou está a ultimar acordos para pagar. Também aqui os problemas acabaram por ser resolvidos, sendo que o mais importante de tudo é que é possível dizer que em 14 de janeiro de 2022 o edifício segurador não ruiu.
Tivemos uma interação acrescida com as agências de viagens, em três vetores. O primeiro, foi termos colocado, pela primeira vez, os serviços jurídicos da Associação à disposição de todos os associados, fosse qual fosse o problema. Um segundo pilar teve a ver com a clarificação dos apoios, houve diferentes tipos de apoio, diferentes condições de acesso e tudo isso gerou um diálogo importante. Finalmente, a própria clarificação das restrições à atividade, desde as restrições às viagens às referentes à abertura de lojas e ao trabalho físico, entre outras. Também aí foi preciso clarificar as situações, junto do Governo e depois junto dos associados.
O que nos traz muita felicidade é que, ao dia de hoje, temos mais associados do que em março de 2020, o que é muito importante. Significa que o setor não ruiu e significa que a APAVT foi útil. Isso chega-nos como paga do trabalho que tem sido feito.
“O momento mais definidor foi o momento em que a secretária de Estado me telefona e me diz que a derrogação da Lei tinha sido aprovada. Foi um momento de grande felicidade para mim porque percebi que o setor ainda não estava salvo mas estava a abrir-se o caminho para nos salvarmos todos”
Sentiu alguma vez que estava incapaz de ajudar mais?
De um modo geral, diria que não foi difícil manter a alma da APAVT elevada. O desafio foi enorme, mas o setor, como um todo, uniu-se, agigantou-se, e acabámos por nos fazermos à vida, até porque não havia alternativa. Mas houve pelo menos um momento que terá mudado o curso da história. Estava aqui sozinho, porque estávamos em confinamento, e o momento mais definidor foi o momento em que a secretária de Estado me telefona e me diz que a derrogação da Lei tinha sido aprovada. Foi um momento de grande felicidade para mim porque percebi que o setor ainda não estava salvo mas estava a abrir-se o caminho para nos salvarmos todos. Se isso não tivesse sido aprovado – e não o foi em vários países -, provavelmente não conseguiríamos resistir.
Esta derrogação era a possibilidade de, num determinado momento de 2020, em vez de reembolsar, substituir o dinheiro por vales utilizáveis até 14 de janeiro de 2022 e então aí, obrigatoriamente reembolsados.
Congresso da APAVT em Aveiro decidido no verão de 2021
Quando é que começaram a pensar que era possível realizar o congresso da APAVT, que não tinham conseguido fazer em 2020?
Tomámos a decisão no início do verão de 2021, altura em que, com algumas regiões do mundo ainda fechadas, muitas restrições e sem muitos resultados ao nível da harmonização europeia, havia um início de regresso à atividade. A decisão acabou por ser algo crítica porque, às portas do congresso, as condições da atividade e de vida regrediram e na semana anterior chegámos mesmo a não saber se seria possível realizá-lo.
No início do verão, nós, em conjunto com a Turismo do Centro e a Câmara de Aveiro, tivemos que tomar uma decisão e tínhamos duas vias: ou nos entregávamos e jogávamos pelo seguro, prejudicando ainda mais a nossa atividade, ou tomávamos o compromisso de sermos agentes da retoma e não apenas espectadores e isso impeliu-nos em direção à realização do congresso. Em boa hora o decidimos. Aquele momento em que o Pedro Abrunhosa subiu ao palco e todos nós nos unimos à volta do palco para festejarmos o regresso, foi marcante.
“Se a realização do congresso foi um ato de resistência, a grande conclusão a tirar dele foi a da decisão de todo o setor do turismo que ali se reencontrou, de fazer o kick off de uma nova fase de recuperação, de voltar à vida, de agir para a construção da retoma”
O congresso foi pensado para ser o pontapé de saída…
O tema do congresso foi o Reencontro e a ideia foi a de tomarmos o compromisso de sermos agentes da recuperação. Se a realização do congresso foi um ato de resistência, a grande conclusão a tirar dele foi a de uma decisão de todo o setor do turismo que ali se reencontrou, de fazer o kick off de uma nova fase de recuperação, de voltar à vida, de agir para a construção da retoma. De certa maneira, é isso que temos visto a partir daí, embora tenha a noção que em outubro ou novembro deste ano voltaremos a olhar uns para os outros para percebermos se o Covid está controlado – ainda que tenhamos que viver com ele -, ou se temos outras surpresas.
Neste período, até pela união do setor, percebeu-se que as agências de viagens, tantas vezes acusadas de só pensarem em vender para fora, foram grandes colaboradoras no “vender para dentro”?
Conheço essa acusação mas ela é injusta porque um dos principais instrumentos do crescimento da procura para Portugal são os agentes de viagens – não apenas pelo seu trabalho comercial mas pelas reservas efetivas. Há uma grande confusão quando se fala em sites de reservas e em bedbanks e quando os hoteleiros falam em reservas através das agências de viagens excluem todas as outras mas hoje há uma série de instrumentos de reserva em que os principais clientes são os agentes de viagens, pelo que a nossa dimensão vai muito para além daquela que é presumida.
É uma acusação injusta porque a nossa atuação enquanto agentes de outgoing é muito importante para o incoming. O turismo é uma estrada de duas vias e não há mais turistas estrangeiros em Portugal se não houver mais turistas portugueses no estrangeiro. Não podemos fechar-nos ao estrangeiro, exceto quando queremos receber alguém e ganhar dinheiro com isso. A relação tem que ser global e aí os agentes de viagens têm uma ação qualitativa bem mais importante do que a que é percecionada pelo setor em geral.
Dito isto, é verdade que fomos muito importantes enquanto agentes de incentivo à procura interna, não só nesta altura como na época da troika. Por decisão nossa, a esmagadora maioria dos congressos, tanto naquela altura como agora, foi realizada em Portugal.
Temeu, neste período, que a TAP pudesse fechar as portas?
Temi e julgo que o desafio da TAP é tão gigantesco que todos devemos pôr na agenda a sua continuação. A TAP deu passos muito importantes em direção ao setor, alterou completamente a relação – devemos isso às novas gestoras e vamos contribuir para que essa relação se fortaleça e para que todas as oportunidades de sobrevivência da TAP sejam aproveitadas.
O desafio ainda não está terminado mas naquela altura temi até porque a relação já era muito má e quando tomámos o problema dos reembolsos em mão, ainda azedou mais. Em todo o caso, houve um momento em que tivemos uma ação definidora do chairman da TAP na altura, Miguel Frasquilho, que terá ajudado a salvar a TAP e os reembolsos.
Com a mudança da administração, as portas do diálogo abriram-se, há hoje confiança entre os parceiros, e essa confiança é mãe de todas as relações.
Na newsletter de quinta feira vai poder ler a segunda parte da entrevista com Pedro Costa Ferreira, presidente da Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo (APAVT), em que vão ser abordados temas como:
- O atual momento do setor
- Os caminhos para a recuperação