Como é manter intacta a “alma” de um hotel (Britania) com 80 anos foi mote de conversa com Luís Alves de Sousa

De portas abertas desde 1944, o Hotel Britania Art Deco, no centro de Lisboa, uma das unidades que integra a coleção Hotéis Heritage Lisboa celebrou no passado domingo, 80 anos de vida. A data foi assinalada na segunda-feira num encontro com a imprensa em que Luís Alves de Sousa, manager da unidade desde novembro de 1975, serviu de “cicerone” por entre a História e as muitas histórias que conta este hotel incomum.
Instalado num edifício considerado de interesse histórico para a cidade, o Britania, exemplo de preservação de arquitetura Art Deco em Lisboa, destaca-se pelo traço vanguardista do arquiteto que o concebeu, o modernista Cassiano Branco, e também pelo facto de ter sido o único hotel nascido na sua época que chegou intacto aos nossos dias. O portão de acesso ao hotel, a receção, o bar, são verdadeiros ex-libris de um hotel que, por isso mesmo, é inconfundível no panorama hoteleiro da cidade e que remete os seus hóspedes para os anos 40 e 50 do século passado. Como inconfundível é, também, o acolhimento caloroso que se sente assim que se transpõe a porta de entrada.


O que não chegou aos nossos dias foi o nome com que foi batizado na origem já que o Britania nasceu do antigo Hotel Império, do qual herdou inúmeras histórias dos anos da ditadura, a que viriam a juntar-se muitas outras já em tempos de liberdade. O general Humberto Delgado, opositor ao regime de então, a poetisa Natália Correia e a sua tertúlia de amigos, o escritor brasileiro Vinicius de Moraes, a atriz e cantora espanhola Carmen Sevilla, são apenas algumas das inúmeras personalidades que por ali passaram e marcaram a história do hotel.
O Turisver esteve neste encontro que celebrou os 80 anos do Britania, ouviu as muitas histórias que perduram no hotel e aproveitou para colocar algumas questões a Luís Alves de Sousa.
Como é que sentiu o peso da responsabilidade de estar à frente de uma unidade com esta história e com as suas muitas histórias?
Eu fui sempre assumindo isto com muito entusiasmo, aliás quando tomei conta do hotel, não tinha ideia do que é que estava por trás, a questão do projeto de Cassiano Branco, a história da Natália Correia… não sabia nada. Só depois fui recolhendo informações. Um grande amigo dos meus pais disse-me que tinha estado neste hotel aquando das eleições de Humberto Delgado e Natália Correia, contou-me um pouco da história e isso alertou-me. Depois fui juntando as peças do puzzle aos poucos, com os meus sócios, com a equipa do hotel. Fomos fazendo tudo com muito entusiasmo e com muito prazer.
O equilíbrio entre a gestão e a manutenção do legado histórico
E o legado histórico favoreceu a gestão, ou a gestão teve que contornar e amparar o legado histórico?
Há as duas vertentes mas gerir um hotel com estas características, com estas limitações, não só em termos construtivos como de adaptação aos tempos modernos e de manutenção, tudo isso condiciona muito os números. Portanto, aqui houve um trabalho grande, sobretudo da parte do Doutor Manuel Duarte Fernandes, de toda a equipe, para chegar aqui. Realmente é muito diferente reconstruir com limitações ou fazer de novo.
Só para dar um exemplo muito, muito simples, todos os frisos estavam muito estragados e claro que a primeira proposta dos empreiteiros era tirar tudo e pôr tudo em esferovite, mas claro que isso não podia ser – isto é estuque e tinha que continuar a ser estuque. Mas claro que isso custou muitíssimo
A parte do barco que tem a parede com as armas e os brasões das ex-colónias, estava toda pintada de branco por cima. Houve uma equipe da Fundação Ricardo Espírito Santo que esteve aqui cerca de três meses a tirar essa tinta, mas era tudo feito ao bisturi, foi mesmo restauro.


Para além do reconhecimento público que existe pela obra que é o hotel e pela manutenção de todas estas características, os clientes reconhecem a unidade?
A maioria reconhece e os resultados confirmam isso. E confirma-se nas conversas que temos com os clientes. São clientes que não vêm propriamente à procura de um hotel de quatro estrelas ou do centro da cidade, vêm à procura desta história, da cultura que dela emana. É assim mesmo com os clientes nacionais.
Muitos dos clientes que escolhem este hotel, conhecem as suas características. Ainda conseguem manter um padrão elevado de atenção ao cliente, similar ao que antigamente era dado?
Isso, felizmente, é histórico e continua, basta ver que as pontuações mais altas que temos tido são sempre no serviço. Aliás, isso é comum ao grupo, é a filosofia do grupo. E isso é reconhecido pelos clientes, muitos escrevem-nos e há histórias incríveis, sobretudo com clientes americanos, que ficam “derretidos” com o mimo que lhes é dado. Depois, temos muitos clientes repetentes, vêm todos os anos, às vezes mais do que uma vez por ano.
Não quero parecer incorreto, mas temos dois níveis de funcionários ao serviço. Há os históricos, e há os novos que entram e que têm que ser um bocadinho acompanhados por esses históricos para absorverem o nosso espírito. Portanto, há um trabalho conjunto de toda a gente e dos que estão cá há mais tempo para que os novos percebam que aqui há uma série de coisas que têm que ser feitas e que muitas vezes não o são noutros hotéis.


“Aqui conta muito o conforto mas estamos sempre a fazer coisas, às vezes parece que não se nota, as há sempre alguém que nota, desde os livros, até nos quartos, algumas fotografias, algumas peças de uso diário”
Falou nos clientes repetentes mas é evidente que também há novos clientes. O que é que tem mudado no hotel para se adaptar às exigências dos mercados mais modernos?
A oferta tem que estar sempre a ser atualizada mas às vezes isso é difícil num edifício antigo como este. Não foi fácil pôr wi-fi como também não foi fácil pôr ar condicionado nos quartos sem que os aparelhos ficassem visíveis – tivemos que desmontar roupeiros, pôr as máquinas por cima do roupeiro, por cima do teto falso da casa de banho.
Aqui conta muito o conforto mas estamos sempre a fazer coisas, às vezes parece que não se nota, as há sempre alguém que nota, desde os livros, até nos quartos, algumas fotografias, algumas peças de uso diário.


O cliente que vem para este hotel vem com alojamento e pequeno almoço?
Ou sem pequeno-almoço. Nós montamos o buffet do pequeno almoço e à tarde servimos um chá, mas não temos restaurante. Quando os clientes mandam vir de fora, em vez de comerem nos quartos, nós arranjamos uma travessa e levamos os talheres, os pratos, guardanapos de pano. É um serviço extra que damos aos clientes mas que não cobramos.
Nunca pensaram ter um restaurante?
Não, isso é um desastre completo (risos). Um restaurante, para ser uma coisa séria, bem servida, é caro. Tem que ter espaço, cozinheiros, economato, compras… Não há reclamações sobre o facto de não termos restaurante, até porque as pessoas podem mandar vir refeições e aqui na rua todos os dias há restaurantes abertos.


Há alguma novidade no hotel?
Temos um quarto novo que abrimos agora. E agora não há espaço para fazer mais quartos. Aliás, posso dizer que só para fazer a casa de banho deste quarto demorou um ano e meio, tivemos que fazer um projeto que teve que ser aprovado… foi como se estivéssemos a fazer um hotel novo. Isso desanimou-nos um bocadinho para fazermos outras coisas, por exemplo, instalar painéis fotovoltaicos.
Já percebemos que quando quer fazer qualquer alteração, por pequenina que seja, é uma carga de trabalhos, dadas as qualificações que o edifício tem e a burocracia. Por outro lado, se pensarmos ao contrário, as entidades reconhecem o valor deste edifício e da unidade?
Não foi fácil, mas agora reconhecem. O primeiro prémio internacional que recebemos creio que foi do Telegraph, e só depois disso é que a imprensa portuguesa começou a dar-nos atenção. Depois o Dr. João Soares, que era o presidente da Câmara, telefona num domingo à noite para a minha casa para me dar os parabéns por esse prémio.
Isto para dizer que hoje reconhecem e ajudam no que podem, mas as leis são o que são complicadas.


“(…) penso que o país, pela sua dimensão e pela sua vocação hospitaleira, tem condições para ter mais unidades com caracterizas singulares. A dimensão do país permite que nos possamos vocacionar para o turismo de qualidade porque há sempre espaço para bons produtos”
O Britania é um hotel singular. Gostava que o país tivesse mais singularidades destas?
Eu gostava e tenho pena que não tenha, porque eu penso que o país, pela sua dimensão e pela sua vocação hospitaleira, tem condições para ter mais unidades com caracterizas singulares. A dimensão do país permite que nos possamos vocacionar para o turismo de qualidade porque há sempre espaço para bons produtos.
O turismo de qualidade não é só os cinco estrelas, há hotéis de quatro estrelas, de três estrelas muito bons, como há alojamento local também muito bom. Portugal é um destino turístico e clientes que apreciem essa qualidade sempre virão.
Agora, o cliente que entra e sai, que não aprecia nada nem do hotel, nem da cidade, só vem porque é chique vir a Lisboa ou para tirar uma fotografia na Torre de Belém, para pôr no Facebook, no Instagram e tal… eu, francamente, dispensava esses clientes. Não precisamos disso. São esses clientes que chocam com os nossos residentes. Esta questão do overtourism, do turismo em excesso, é muito provocada pelo choque entre os residentes e uma grande parte dos turistas que estiveram em algum alojamento local – não quero generalizar porque não sou contra o alojamento local, mas na minha opinião em muitos casos é isso que acontece. Eu acompanhei de perto o “boom” do alojamento local, em 2013-2015, fiz parte de um grupo de trabalho da Secretaria de Estado do Turismo, representando os privados, e visitei imensos edifícios e ouvi muitas queixas dos habitantes, não contra o turismo mas contra as pessoas que iam para essas unidades e faziam muito barulho com festas e outras coisas. Por isso sou um bocadinho contra o alojamento local em edifícios residenciais.
