Atilio Forte alerta que o consumidor vai olhar para a qualidade de serviço que obtém pelo valor que paga

Os apoios à atividade turística, nomeadamente durante a pandemia, a escassez de recursos humanos e a qualidade de serviço, foram alguns dos temas abordados na segunda parte da entrevista a Atilio Forte, em que falámos também das especificidades do turismo e da importância estratégica que o setor tem para a nossa economia.
Terminámos a primeira parte da nossa entrevista a falar da inexistência de um pensamento estratégico que permita ser proactivo nas questões da atividade turística. O que lhe pergunto é se, uma vez que os governantes não tomam a dianteira, não competirá a quem está no setor, ao movimento associativo, colocar em cima da mesa as questões relacionadas com uma visão de futuro?
Compete principalmente a quem está no turismo porque quem está no turismo tem, mais do que qualquer outra pessoa, a noção, a informação e a capacidade de ver o que é que fundamental para que a atividade turística progrida e, portanto, aqueles que estão no setor têm que ser os primeiros a serem proactivos, a marcar a agenda e a dizerem quais são os problemas e os constrangimentos mas também a avançar com propostas porque não há nenhum governante que pense tão bem o turismo como quem está no turismo.
Não tendo nós, ou raramente tendo tido, governantes como alguma especialização ou algum conhecimento em turismo, o que nós pedimos a quem governa é que tenha bom senso, que se saiba rodear de pessoas com conhecimentos e que saiba ouvir mas para isso é preciso que lhes cheguem propostas. É fundamental que alguém pense no turismo, que tenha uma visão prospetiva, que antecipe as tendências, que veja o que se está a passar no mundo e que veja, também, para onde é que o mundo vai caminhar, que veja as múltiplas situações que interagem com o turismo e que depois, adaptando isso à realidade e às condicionantes do nosso país, projete aquilo que se pretende para Portugal e apresente propostas e depois, obviamente, se bata por elas e faça com que tenham vencimento.
Então o que constata é que as associações são pouco proativas?
Há sempre exceções mas, de uma forma geral, o turismo está hoje muito mais reativo do que já esteve, é francamente bom a comentar a agenda mas não a marcá-la, ora eu sempre entendi – e ainda não houve nada que me demonstrasse o contrário – que o mais vantajoso é que quem está na atividade a compreenda, que aponte os seus problemas e constrangimentos e aponte caminhos e soluções e, portanto, seja proactivo e marque a agenda. Os governos têm que ir atrás da agenda de quem sabe e de quem está por dentro dos assuntos, e não o contrário.
Por experiência própria, sei que ser dirigente associativo é uma tarefa extremamente ingrata porque, desde logo, trata-se de tentar agradar a gregos e a troianos, o que é muito difícil. Mas é também uma missão que, quando a temos, nos obriga a servir a comunidade que representamos e ao servirmos essa comunidade temos que ser proactivos, temos que pôr os problemas em cima da mesa, temos que trabalhar para conseguirmos ser bem sucedidos nas propostas e nas soluções, porque pôr só problemas não chega, é fundamental indicar caminhos e apontar soluções.
O Banco de Fomento e o modelo de apoios ao turismo
No início da nossa conversa referi que associações e empresários estavam mais preocupados com os fundos de apoio do que com outras situações. Recentemente tomou posse a nova presidente do Banco de Fomento, uma instituição de que o turismo sempre esperou muito e de que até agora viu muito pouco. Pode ser desta que o Banco de Fomento funcione?
Se funcionar é sempre bem vindo, mas a pergunta que eu faço é: o modelo de apoios que nós temos para o turismo é o que interessa à atividade? Acho que esta é que é a questão porque o que é que nós tivemos durante a pandemia? Tivemos um conjunto grande de medidas destinadas a toda a economia e praticamente não houve diferenças para o turismo. Ora nós não podemos tratar o que é diferente como sendo igual e o turismo tem especificidades próprias, por exemplo: o turismo não pode criar stocks e por isso as receitas que gera diariamente são a única forma que tem para honrar os seus compromissos passados e presentes – já nem falo nos futuros. Sempre defendi que devia ter havido fundos perdidos para o turismo durante a pandemia e não houve. Deu-se endividamento bancário às empresas do turismo que agora vão ter que começar a pagar e descapitalizadas como estão como é que o vão fazer? É este tipo de interrogações que coloco.
Há outra questão que coloco quando se fala de apoios para o turismo e que tem a ver com o Plano de Recuperação e Resiliência, o PRR . O turismo foi totalmente banido do PRR, aliás, o setor privado foi banido e o turismo em particular. Isso é correto para a maior atividade económica que tem andado a levar, sucessivamente, ano após ano, crise após crise, a economia portuguesa às costas?
Há quem diga que o turismo é protegido porque tem, no Turismo de Portugal, um mecanismo de financiamento às empresas de que outros sectores não dispõem…
O dinheiro que está no Turismo de Portugal é gerado pelo próprio turismo, nomeadamente pelo imposto especial de jogo que paga 77,5% do orçamento do Turismo de Portugal.
A questão aqui é a da compreensão da atividade turística. Enquanto eu, se tiver uma fábrica que produz sapatos, se tiver financiamento bancário e não tiver mercado devido a uma pandemia que encerra as sapatarias e por isso não escoar o produto, consigo guardar os sapatos que não vendi, pô-los em stock, e mais tarde posso criar alguma riqueza com eles, mas um quarto de um hotel que ficou fechado por força da pandemia, um lugar de avião que não foi vendido, uma mesa de um restaurante que não foi ocupada, nunca mais pode criar riqueza. Damos os mesmos apoios a uns e a outros? Creio que não é por aí.
Fala-se em fundos, em subsídios, ao mesmo tempo que se fala em menos Estado. Sendo uma atividade que não para de crescer, porque é que um governante tem que estar sempre a ver onde é que vai buscar dinheiro para subsidiar o turismo?
Nós temos que definir o que queremos e estamos a falar nesta questão dos apoios na sequência do que se passou com a pandemia e neste caso os apoios foram desfasados face às necessidades do turismo mas o movimento associativo podia ter tido um papel muito mais incisivo no sentido de dizer “isto serve-nos”, “isto não nos serve” e “propomos que seja feito isto”. Temos que distinguir o que é essencial do que é acessório porque não podemos pensar na resolução de um problema no momento, temos que pensar na sua consequência a prazo. Veja-se que as empresas do turismo que tiveram capacidade para manter os postos de trabalho durante a pandemia estão hoje com muito melhor desempenho do que aquelas que não o conseguiram porque o turismo vale pelas pessoas, o maior ativo que o turismo tem são as pessoas e, portanto, quem o conseguiu fazer está hoje numa posição privilegiada. O que era importante era que retivéssemos esse talento e isso não aconteceu, por isso era tão importante que o turismo marcasse a agenda mas para isso tem que se ser proativo.
“Do ponto de vista da fiscalidade que incide sobre o fator trabalho, uma empresa de turismo, que é de mão de obra intensiva e que vai ter sempre necessidade de criar e de ter muito emprego, compara com uma empresa que conseguiu diminuir o número dos seus trabalhadores por causa da evolução tecnológica e eu pergunto: é justo que estas duas empresas paguem a mesma contribuição fiscal do ponto de vista do fator trabalho?”
Falou na retenção de talento e essa palavra está associada aos quadros das empresas, mas a falta de recursos humanos no turismo é muito mais abrangente. As tecnologias não resolvem os problemas no turismo como resolvem em outros setores, e parece que o problema tem poucas soluções…?
Vivemos num mundo onde a tecnologia está cada vez mais a entrar na vida das empresas e muitas profissões estão a ser substituídas por tecnologia. No turismo também há profissões a desaparecer e a dar lugar a outras mas há uma componente de mão de obra intensiva que vai manter-se sempre. Porventura, as pessoas até vão ter que ser mais profissionais do que são hoje, vão ter que estar mais capacitadas, vão ter que ter um conjunto adicional de qualidades mas vamos continuar a ter uma atividade feita por pessoas para pessoas. Do ponto de vista da fiscalidade que incide sobre o fator trabalho, uma empresa de turismo, que é de mão de obra intensiva e que vai ter sempre necessidade de criar e de ter muito emprego, compara com uma empresa que conseguiu diminuir o número dos seus trabalhadores por causa da evolução tecnológica e eu pergunto: é justo que estas duas empresas paguem a mesma contribuição fiscal do ponto de vista do fator trabalho? Quanto a mim não é, porque há uma que está a criar mais emprego do que outra. Mesmo do ponto de vista do trabalhador também não o é porque neste momento temos falta de mão de obra no turismo mas o facto é que um trabalhador paga exatamente a mesma contribuição sobre o fator trabalho, seja em Taxa Social Única, seja em IRS, esteja a trabalhar no turismo ou noutra área de atividade. Isso é algum fator de atração adicional para o turismo que neste momento tem carências? Não é.
Mas o grande problema é que se atingiu o pleno emprego e há outros setores que também têm dificuldades de mão de obra…
O que eu vejo é que há pessoas que continuam a sair de Portugal para irem trabalhar em turismo no estrangeiro porque têm melhores condições e nós, se queremos cativar as pessoas temos que lhes dar condições. Obviamente, o salário não é tudo e a fiscalidade não é tudo. Do ponto de vista laboral, o turismo tem um conjunto vastíssimo de sazonalidades: tem sazonalidades diárias porque um restaurante funciona mais à hora e almoço e do jantar; tem sazonalidades aos fins de semana, há unidades turísticas que trabalham mais ao fim de semana do que durante a semana, o que é normal porque o turismo funciona em contraciclo face às demais áreas da economia. A questão é esta: o mundo mudou com a pandemia e nós, do ponto de vista humano, passámos a dar um valor muito diferente às nossas vidas, à socialização, à nossa família e ao nosso tempo livre, porque a pandemia a isso nos obrigou.
Acredita que em 2023 se consiga resolver a questão da mão de obra, uma vez que os decretos foram publicados?
Não estou seguro de que os diplomas relativos à mobilidade dentro da CPLP resultem tão bem. Penso que é uma boa ideia mas há que ter algumas cautelas, primeiro, mesmo admitindo que essas pessoas vêm ganhar salários condignos, têm onde ficar e são bem recebidas, temos um problema porque o visto de autorização de residência vai dar-lhes acesso ao espaço Schengen e é muito provável que essas pessoas cumpram aqui os seis ou oito meses de que precisam e depois facilmente se desloquem para outro país onde vão ganhar mais a fazer exatamente o mesmo. Acho que esta é uma questão que devemos ponderar.
A qualidade, uma das bandeiras do nosso turismo, não pode baixar
Há uma situação em que políticos e associações estão de acordo: está a haver uma perda de qualidade nos serviços do nosso turismo ao mesmo tempo que os preços sobem. Como é que vamos encarar os próximos anos se a qualidade continuar a descer e os preços continuarem a aumentar?
Duas notas: a primeira para dizer que no final de 2021 alertei para este problema, ou seja, preveni que a retoma viria em força e que iriamos ter um problema de qualidade na oferta, sobretudo devido à escassez de recursos humanos e que este era um problema que não iria ser temporário. A segunda nota para a qual também chamei a atenção foi que iriamos ter uma subida de preços e que isso poderia ser encarado, do ponto de vista do consumidor, numa dupla perspetiva: numa primeira fase iria haver compreensão, por um lado porque o consumidor hoje está muito bem informado e sabe os problemas com que a atividade se está a debater e, por outro lado, porque, depois de dois anos de estarem fechadas, as pessoas aceitariam tudo muito mais facilmente. Mas isso tem um prazo e já avancei que em 2023, nomeadamente da Páscoa para a frente, quando começarmos a entrar nos meses mais fortes da atividade turística, o consumidor vai olhar para a qualidade de serviço que obtém em troca daquilo que pagou e se a qualidade diminuir as pessoas vão começar a preferir outro destino. Se esta perceção passar para o ciberespaço, para a blogosfera, para as redes sociais, rapidamente o destino pode ficar conotado com menor qualidade e isso é algo que não nos deve interessar. Portanto, todo o pacote de medidas que levasse à retenção de talentos já devia ter sido posto em prática porque o problema é que estas medidas demoram tempo, por isso temos que pensar por antecipação, ter visão, ter estratégia e não andar a “apagar fogos” dado que, se o fizermos, vamos resolvendo pontualmente os problemas mas nunca estaremos a resolver a questão de fundo.
Outra questão mais complicada é como não aumentar substancialmente os preços se a inflação continuar a subir?
Isso é uma inevitabilidade e a nossa preocupação tem que ser a de acompanhar a subida de preços com a qualidade e ter em atenção que o poder de compra dos consumidores está a fazer um movimento antagónico, ou seja, está a diminuir porque o aumento do custo de vida é uma realidade no mundo inteiro – diremos que tem mais incidência na Europa e na América do Norte porque são mercados que nos estão mais próximos mas a Ásia também está com problemas e a própria China, embora esteja a crescer, está a crescer muito menos do que devia e está a afetar toda a economia mundial.
Penso que o inverno vai ser decisivo porque vamos ter a resposta ou, pelo menos, uma sensibilidade maior para três questões essenciais: uma é se a pandemia está ou não controlada, outra se a guerra vai escalar do ponto de vista geográfico e do ponto de vista militar ou não e, finalmente, se conseguimos ou não controlar a inflação porque embora a guerra tenha sido o acelerador da inflação nós já tínhamos todos os sinais que nos permitiam antever que a inflação iria subir, como o aumento dos custos energéticos, os problemas nas cadeias logísticas… Se a pandemia estiver controlada, se a guerra não escalar e se as políticas financeiras conseguirem, de alguma forma, controlar a espiral inflacionista, creio que ficam criadas condições para suster a sangria que está a afetar o poder de compra dos consumidores e para haver uma maior estabilização das cadeias de valor, nomeadamente a do turismo. De contrário, aquilo a que iremos assistir será a viagens para mais perto, mais curtas e mais baratas.
Passados todos estes anos, com todo este crescimento da atividade, continua a defender um Ministério do Turismo?
Com a aviação incluída, defendo, mas não reduzo a questão do Ministério à orgânica governativa (que acho que era importante e que devia ter a aviação). Acho que, de uma vez por todas, a política e os políticos têm que olhar para o turismo com seriedade e com a importância estratégica e vital que ele tem para a nossa economia, e que merece. Por isso considero que seria também fundamental que o turismo voltasse a ter uma Comissão Parlamentar que lhe fosse dedicada e até mesmo uma assessoria dentro da Presidência da República exclusivamente dedicada ao turismo e à aviação – e tive oportunidade de o dizer nos meus comentários aquando das últimas eleições presidenciais.
Acho que foi uma perda enorme para o turismo não ter uma Secretaria de Estado exclusiva na orgânica do atual Governo e isto não tem a ver com os atores mas com a imagem que se passa para o país porque faz uma grande diferença o turismo estar sozinho ou estar junto com o comércio e os serviços e não estou aqui a desvalorizar esses sectores. Eu dei muitas vezes este exemplo: o senhor Draghi, que era um tecnocrata que durante muitos anos esteve à frente da maior instituição financeira europeia, o Banco Central Europeu, quando foi primeiro-ministro criou o Ministério do Turismo e quando lhe perguntaram porquê ele respondeu que o fez porque o turismo foi a atividade mais afetada pela pandemia e era aquela que precisava de mais interação com todas as áreas do Governo para se reerguer. Este é o exemplo acabado de como as coisas devem ser pensadas e devem ser feitas.